Brasil
O mundo pós-pandemia pode girar sobre duas rodas
Motocicletas ocupam pouco espaço nas vias, são fáceis de estacionar, podem circular em locais muito estreitos e alcançam velocidades compatíveis com a fluência requerida no trânsito urbano.
Também já não poluem como no passado, garantem o fluxo mais rápido do tráfego e permitem usar acessórios que reduzem o incômodo do frio e até da chuva.
Com custo de venda e de manutenção adequados à baixa renda média brasileira, na maioria dos modelos, viraram objeto de desejo e de superação de grandes dificuldades nas comunidades mais pobres.
Para completar, o mercado de transporte sobre duas rodas vive um fenômeno de aperfeiçoamento tecnológico com as baterias elétricas. O preço cai vertiginosamente na medida em que se antevê uma drástica redução de ruídos nas cidades.
Motocicletas são também muito inseguras quando utilizadas incorretamente, por condutores suicidas que não tiveram educação de trânsito, desconhecem regras de compartilhamento do espaço, abusam da velocidade, portam-se como delinquentes – e não são reprimidos adequadamente.
Num balanço rápido entre vantagens e desvantagens, é fácil perceber que boa parte dos problemas com esse tipo de veículo está localizada dentro do capacete do condutor, assim como, nos automóveis, o risco de acidente normalmente reside na qualificação e na atenção do motorista.
A tolerância com a falta de civilidade, prima-irmã da corrupção do guarda da esquina e do fiscal de obras, imprimiu para as motos, no Brasil e em outros países do terceiro mundo, o rótulo único de risco incômodo à segurança pública e ao tráfego. Motos pequenas, veículo dos menos iguais, ainda mais que isso: são vistas como um transtorno.
Ao longo do tempo, consolidou-se a imagem dos motociclistas como a de uma categoria menor entre os usuários da malha urbana, de grupo condenado a viver no limbo da legislação e da organização viária. A moto, no trânsito, consolidou a fama de problema, jamais de uma solução.
Marginalizados, maltreinados, condenados a ganhar a sobrevivência um dia por vez, os subempregados que atuam sobre duas rodas reagiram, ao longo do tempo, atendendo ao estereótipo que se formou sobre eles.
Viraram heróis renegados da pizza quente e da remessa do documento esquecido, além de vítimas mais comuns da própria imprudência. Nesta quarentena, agregaram a esse perfil a condição de ídolos malpagos de integrantes dos grupos de risco que precisam evitar as ruas e o comércio.
Mas basta lembrar quanto já foi pior o comportamento dos chamados motoboys e trágica a guerra entre eles e outros condutores, principalmente em São Paulo, para perceber que qualquer quadro negativo não tem nada que ver com o tipo de veículo e sim com o reconhecimento e a atenção que a atividade deve ter por parte da sociedade.
Essa atenção aumentou, mas a visão criminalizadora e inconsistente, por parte dos gestores de trânsito, melhorou muito pouco.
Admitem-se, por exemplo, as mototáxis em muitas localidades, sem qualquer regulamentação, fiscalização ou critério, o que é praticamente uma condenação adicional dos que têm menos recursos a um mundo de insegurança.
Numa medida esdrúxula em outra direção, tentou-se na capital paulista estabelecer a proibição de viagens com carona a bordo, alegadamente para evitar assaltos, mas na prática para demonstrar apenas a incompreensão do autor da ideia sobre como se deve atuar na segurança pública.
No campo das experiências positivas, blitze policiais intimidaram muitos criminosos do trânsito, seja sobre duas ou quatro rodas. A lei seca foi boa contribuição, os radares cumprem um papel doloroso mas educativo e a disseminação de serviços por aplicativos, ainda que exploratória, pelo menos trouxe um panorama minimamente organizado.
Talvez haja elementos sociológicos para aprofundar essa discussão, mas faz sentido olhar para frente e analisar como, no novo mundo que emergirá da pandemia, a rede de preconceitos pode se diluir rapidamente, para que as motocicletas passem a ser alternativa respeitada, incentivada e bem organizadas no conjunto de meios de transporte.
Enquanto não houver uma vacina e não se tiver a comprovação de que ela será efetiva por longo período, o transporte individual torna-se garantia contra contaminações – com toxidade maior para o trânsito na medida em que aumenta o tamanho do veículo, obviamente.
É certo que serão necessários mais ônibus nas ruas e que haverá também mais carros circulando, por ser preciso manter o chamado distanciamento social. Numa conclusão sensata, o uso de motos é hipótese mais que razoável contra um pandemônio irreversível no trânsito.
Com a redução nas restrições à circulação urbana, que já começa em vários pontos do país, seria desejável ver departamentos de organização viária, legisladores e até fabricantes de veículos envolvidos num processo que traga nova visão para esse momento.
Aquele mundo em que os mais abastados cultuam o automóvel e as autoridades só pensam em transportar gente como gado, em sistemas coletivos que parecem jamais dar conta da demanda, fica para trás.
Motociclistas de baixas cilindradas podem , enfim, até almejar respeito semelhante ao antes comicamente dedicado, nas manhãs de sábado, a enxames de novos ricos fantasiados de transgressores, esses na verdade montados em máquinas de fazer barulho e consumir combustível.
É legítimo que esses cidadãos privilegiados desfrutem do prazer de passear com o vento no rosto, movendo uma engrenagem da economia que desenvolve novas tecnologias e aciona a cadeia do luxo gerando empregos e circulação de moeda.
É absurda, no entanto, a distância que separa essa classe de prestígio social daquele reservado aos colegas diariamente embarcados em veículos bem menos potentes e muito mais úteis.
Pouco antes de o mundo se confrontar com a catástrofe sanitária que estabeleceu as aglomerações de pessoas e, portanto, o transporte de massa, como um dos maiores elementos de risco à saúde já enfrentados pela humanidade, umas poucas e caras scooters apareciam nas grandes cidades brasileiras, num pequeno sinal de que a classe média viu mais do que pontos turísticos em suas excursões à Europa.
No velho continente, em vários países, o transporte individual sobre duas rodas é rotineiro e imprescindível para que os outros modais possam cumprir seu papel sem um colapso diário semelhante ao que os sul-americanos enfrentam em suas metrópoles.
Aqui, com um clima muito mais favorável para o uso de motos o ano inteiro, abre-se a oportunidade de criar faixas exclusivas nos corredores mais movimentados e oferecer bolsões de estacionamento nos centros comerciais e nos entornos de estações de metrô ou grandes terminais de ônibus.
Cria-se a chance de respeitar o cidadão que faz uma opção socialmente correta, identificar e reconhecer os profissionais que viajam sobre esse tipo de veículo, replicar experiências disciplinadoras de trânsito civilizado em outros países. E a necessidade, claro, de fiscalizar mais, para que aumente a segurança de todos.
Fábricas também podem exibir um empenho efetivo na construção dessa nova realidade, melhorando a hoje fictícia segurança de seus modelos básicos, reduzindo margens de lucro, buscando financiamentos menos espoliantes para seus consumidores e comprometendo-se com o treinamento de novos condutores.
As motocicletas, como também as bicicletas e até os patinetes, em outras proporções, são estrelas desse universo que já ganhou o nome lugar comum de “novo normal”.
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