No governo Bolsonaro, os pagamentos se intensificaram, chegando a R$ 17 milhões. O mais recente foi feito no último dia 1º, no valor de R$ 600 mil. Somente a gestão do general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, pagou mais de R$ 1 milhão à empresa. Contratos seguem vigentes até 2021. Documentos obtidos pelo GLOBO e informações levantadas pela reportagem apontam suspeitas sobre aeronaves do sócio da Icaraí em garimpo ilegal na terra ianomâmi.
O problema ali é histórico, com agravamento a partir da década de 80. Entre idas e vindas, a presença de garimpeiros na região explodiu em 2019, a partir do incentivo feito pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. Associações de indígenas calculam que 20 mil garimpeiros estão dentro da terra indígena, onde vivem 26 mil índios, em Roraima (a grande maioria) e Amazonas (o território se estende pela Venezuela). O aumento dos casos de Covid-19 nas aldeias é atribuído a essa presença dos garimpeiros, já responsáveis pela contaminação dos rios por mercúrio e por amplos desmatamentos de áreas para a exploração do ouro.
Episódios reforçam suspeita
O inquérito da Operação Tori – o mesmo que resultou, no último dia 3, na prisão de Pedro Emiliano Garcia, condenado por genocídio de ianomâmis na década de 90 – traz a ordem de apreensão de uma aeronave de Mello expedida pela Justiça Federal em Roraima. O processo também contém as fotografias e a denúncia formulada pelos indígenas a respeito da presença do avião em suas terras, supostamente a serviço do garimpo ilegal.
Um relatório da PF de 2017 afirma que o avião fazia voos para abastecer o garimpo ilegal às margens do Rio Uraricoera. Ainda segundo a PF, uma outra aeronave, de um dos presos na operação, estava no nome de Mello. Aviões de sua propriedade foram encontrados por policiais em pista de pouso usada por garimpeiros. Além disso, o empresário foi sócio de um dos acusados presos por operar pistas ilegais para o garimpo, conforme a PF.
Em abril deste ano, o empresário se envolveu em mais um episódio que aponta para a suspeita de ligação com o garimpo ilegal no território ianomâmi. Naquele mês, a Icaraí já havia recebido R$ 22,6 milhões do Ministério da Saúde para fornecer aeronaves ao transporte de indígenas e profissionais de saúde, a serviço dos DSEIs. O outro sócio da Icaraí acusou Mello de ter roubado dois helicópteros – levados do Pará e de Santa Catarina – e formalizou a acusação à Polícia Civil de Roraima, que obteve um mandado da Justiça para apreender as aeronaves. O sócio afirmou que temia o uso dos helicópteros em áreas de garimpo. Depois de dois meses de investigação, a polícia concluiu que não houve roubo. E as aeronaves seguem apreendidas.
– A polícia foi usada para que um sócio tentasse reaver helicópteros do outro sócio, numa disputa na esfera cível. Houve má-fé – disse ao GLOBO a delegada Cândida Senhoras, que conduziu a investigação.
Investigados por garimpo ilegal pela PF estavam por trás de uma outra empresa de transporte aéreo que prestava serviço aos DSEIs, a Paramazônia Táxi Aéreo. A empresa, porém, mudou de nome e de sócios em 2018, e virou a Voare Táxi Aéreo, conforme aprovado pela Anac. A Voare já recebeu R$ 197 milhões do Ministério da Saúde entre 2014 e 2020 (até 2 de julho) para transportar indígenas e profissionais de saúde às terras ianomâmi e à reserva Raposa Serra do Sol. A empresa também recebeu recursos de outros órgãos federais, como Exército e Fundação Nacional do Índio (Funai).
Uma segunda empresa de Mello, a Cataratas Poços Artesianos, prestou serviços a DSEIs e ao Exército e recebeu R$ 8,6 milhões entre 2014 e 2018. Documentos do inquérito da PF apontam ainda que ele foi sócio em uma terceira empresa, juntamente com um investigado que chegou a ser preso na Operação Tori. A empresa é a Tarp Táxi Aéreo, que recebeu R$ 29 milhões do Ministério da Saúde entre 2016 e 2018. O empreendimento já tem outros sócios.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, a Icaraí Turismo Táxi Aéreo enviou uma nota assinada pelo sócio Paulo Brittes Martins. Segundo ele, Mello vem realizando “atos imprudentes na administração da empresa”. Por haver um “desacordo sobre a integralização do capital social”, uma ação de dissolução da sociedade foi ajuizada na Justiça em Araucária (PR), onde está sediada a empresa, em 20 de abril, diz a nota. “Não temos nenhum conhecimento sobre os atos que Rodrigo Martins de Mello vem realizando em nome da empresa. A empresa aguarda o pronunciamento judicial para afastar o sócio continuar suas operações”.
Ao GLOBO, Mello afirmou que nunca foi chamado à PF para depor, nem arrolado nos autos da investigação. Um depoimento foi dado à Justiça, segundo ele. A aeronave apreendida pela PF, por determinação da Justiça Federal, foi vendida, mas sem a conclusão do procedimento da venda junto à Anac, conforme o empresário.
– Quando for intimado, vou apresentar o contrato de compra e venda – disse.
O empresário afirmou ser “muito parceiro” do investigado pela PF que chegou a ser preso na operação Tori, com uso do aeródromo dele e “arrendamento operacional” de aeronaves. Mas os dois nunca foram “documentalmente sócios”, segundo Mello. Ele disse ainda que tem uma empresa de mineração, mas que faz apenas prospecção de minério, em fase de liberação das pesquisas.
Mello disse que já teve piloto de sua empresa envolvido em acusação de garimpo ilegal em território ianomâmi:
– Há oito anos presto serviço aos DSEIs. Nunca participei de garimpo. Já tive pilotos que participaram. Diante de denúncia de desvio de rota para beneficiar garimpeiro, houve a demissão.
O Ministério da Saúde limitou-se a dizer que “a atual gestão da Secretaria Especial de Saúde Indígena tem sido rigorosa no cumprimento de pré-requisitos legais para contratação de serviços e atua com mecanismos de controle para evitar que irregularidades aconteçam”. “As contratações só são efetivadas após apresentação de documentos exigidos pela Lei 8.666”.
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