Saúde
Mudanças climáticas podem agravar resistências de bactérias
À medida que os padrões de precipitação e temperatura são alterados pela ação de gases de efeito estufa, aumenta o risco de bactérias e outros agentes patógenos desenvolverem resistência a medicamentos, alerta estudo
A resistência de bactérias e outros patógenos a medicamentos deve afetar 10 milhões de pessoas em 2050, e as mudanças climáticas poderão agravar ainda mais esse cenário. O alerta é de um artigo publicado na revista Nature e que será apresentado no Congresso Global de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (Escmid), no próximo fim de semana em Barcelona, na Espanha. O estudo, da Universidade de KwaZulu-Natal de Durban, na África do Sul, destaca que o aumento das temperaturas, das emissões de gases de efeito estufa e da elevação do nível do mar contribuem com um problema definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “ameaça global”.
Segundo a agência das Nações Unidas, de 2017 a 2022, infecções na corrente sanguínea provocadas por duas bactérias bastante frequentes, a Escherichia coli e a Salmonella spp, aumentaram pelo menos 15%. O relatório mais recente da OMS sobre o assunto mostra que foram relatados níveis de resistência acima de 50% em microrganismos que causam sepse hospitalar, como Klebsiella pneumoniae ou Acinetobacter ssp.
O uso exagerado de antibióticos é o principal motivo da resistência antimicrobiana (RAM), mas outros fatores contam, explica Sabiha Essack, da Unidade de Pesquisa Antimicrobiana da Universidade de KwaZulua do Sul e principal autora do estudo. Segundo ela, as alterações climáticas são multiplicadoras de ameaças da RAM porque exercem efeito na propagação de doenças, ao mesmo tempo em que alteram as condições físicas e ambientais em que os micróbios vivem.
“As mudanças climáticas comprometem a integridade ecológica e ambiental dos sistemas vivos e permitem que os agentes patogênicos causem cada vez mais doenças”, diz. No Brasil, por exemplo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) associa as alterações na temperatura e no sistema de precipitações a aumento de arboviroses — doenças transmitidas por mosquitos — como dengue, febre-amarela e malária, além de mais casos de leishmaniose tegumentar americana e leishmaniose visceral. “As atividades humanas associadas ao crescimento populacional e aos transportes, juntamente com as mudanças climáticas, aumentam a resistência aos antibióticos e a propagação de doenças transmitidas pela água e por vetores de seres humanos, animais e plantas”, destaca Sabiha.
Cólera
Segundo a especialista, à medida em que as temperaturas aumentam, as taxas de infecção bacteriana podem elevar, e as doenças espalharem-se para altitudes e latitudes mais elevadas, onde não eram encontradas anteriormente. “Os exemplos incluem o aumento das temperaturas nos sistemas hídricos, contribuindo para uma melhor sobrevivência das espécies Campylobacter, Salmonella e Vibrio, que causam doenças transmitidas pela água e pelos alimentos”, diz.
A Candida auris ganhou tolerância térmica e à salinidade em ecossistemas de zonas úmidas, relata Essack. “Escherichia coli e alguns dos patógenos ESKAPE crescem idealmente a 32-36ºC”, complementa a pesquisadora, lembrando que os micróbios ESKAPE são de um grupo de bactérias, incluindo K. pneumoniae e Enterobacter, que costumam escapar da ação dos antibióticos.
Com o aumento das temperaturas e da incidência e prevalência de doenças infecciosas, mais pessoas precisarão usar agentes antimicrobianos, e consequentemente, haverá mais RAM entre os patógenos. Essack cita um estudo realizado nos Estados Unidos que mostra que o aumento da resistência à E. Coli, associada a infecções urinárias, diarreia e colite hemorrágica, reflete mudanças na temperatura ao longo de 30 anos. Com mais países registrando médias elevadas em cada estação, a ação dos medicamentos contra esses microrganismos começa a falhar.
Climatólogos e virologistas
Uma preocupação de Sabiha Essack, cientista da Unidade de Pesquisa Antimicrobiana da Universidade de KwaZulua-Natal, na África do Sul, é com o aumento do nível do mar e o degelo da Antártida e do Ártico. Há relatos recentes de genes de resistência antimicrobiana liberados do permafrost na Sibéria e no Alasca — essas proteínas codificam enzimas que conferem uma superproteção contra os medicamentos.
“A mudança climática também está causando o movimento das correntes oceânicas e, com elas, moverão os genes de resistência antimicrobiana”, alerta Essack. Os lastros de navios também têm sido associados ao transporte de RAM pelos mares. As bactérias Vibrio são particularmente preocupantes: são patógenos marinhos que prosperam em águas ligeiramente salgadas em climas quentes.
Um aumento na temperatura da superfície do mar devido às mudanças climáticas pode alterar a abundância, a distribuição e padrões de infecção das Vibrio. A cólera, por exemplo, é transmitida por um micróbio do grupo e, segundo a OMS, os casos da doença estão aumentando.
Soluções
“Para lidar com essas ameaças, precisaremos de liderança e compromisso políticos inequívocos; fortes quadros políticos e de governança globais e locais; soluções inovadoras e baseadas em evidências e pesquisa de implementação para adaptar intervenções bem-sucedidas aos contextos dos países”, acredita pesquisadora sul-africana. “As iniciativas que visam fazer progressos nas alterações climáticas ou na RAM devem unir forças e destacar-se mutuamente para tornar claros os seus benefícios mútuos.”
A poluição atmosférica, um dos fatores associados às mudanças climáticas, também tem implicação no aumento da resistência antimicrobiana, segundo um estudo publicado na revista The Lancet, que encontrou relação estatística entre a exposição a material particulado — partículas em suspensão com diâmetro menor que 2,5 micrômetros, e um maior registro de RAM em 117 países, incluindo o Brasil.
“Estudos epidemiológicos anteriores também mostraram que os genes de resistência aos antibióticos e as bactérias resistentes aos antibióticos estão associados ao aumento dos níveis de partículas transportadas pelo ar”, relata Julie Morrissey, professora de Genética Microbiana da Universidade de Leicester, na Inglaterra.
Segundo Morrissey, há um conjunto crescente de evidências de laboratório que mostra que as partículas poluentes do ar interagem diretamente com as bactérias, alterando sua expressão genética. Isso pode potencializar a RAM e aumentar a virulência bacteriana.
Próxima pandemia
Em um artigo publicado na revista Frontiers in Science, um coletivo internacional de microbiologistas clínicos e de saúde pública da Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID) apela ao investimento em tecnologia, capacitação, experiência e colaboração para preparar o mundo para futuras pandemias. “As doenças infecciosas com tendência epidêmica perpassam as fronteiras tão rapidamente quanto as pessoas e as mercadorias comerciais viajam pelo mundo”, disse o autor principal, Marc Struelens, da Université libre de Bruxelles, na Bélgica. “Um surto local hoje pode tornar-se amanhã a próxima crise pandêmica mundial.”
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