Brasil
Especialistas afirmam que falta de políticas de prevenção favoreceu tragédia no RS
Para eles, havia sinais de que ocorreria uma grande inundação, como a que já deixou 169 mortos e 581 mil desalojados
Capão da Canoa (RS) — A carência de políticas de prevenção focadas nas bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul está entre os fatores que levaram à maior tragédia ambiental já registrada no estado, avaliam especialistas consultados pelo Correio. A cheia de rios, lagos e arroios do Rio Grande do Sul tem sido acompanhada por todo o país com atenção desde o início das fortes chuvas no estado, no fim de abril. As inundações ocasionadas por extravasamento dos afluentes e alto volume de precipitação já deixaram 169 mortos, 581 mil desalojados e 55 mil em abrigos.
“É um conjunto de fatores. Primeiro, é a questão da urbanização, pela falta de cuidado com a construção de casas em lugares que não poderia, como aterros, e sem infraestrutura adequada. Outra é o meio ambiente, com o não respeito à floresta, degradação da área verde e as mudanças climáticas”, comenta Guillaume Pierre, doutor em Geografia Social e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Maine (EUA) e professor do curso de Desenvolvimento Regional do Câmpus Litoral Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O especialista explica que, onde há floresta, a água é absorvida e não acumula tanto na superfície. Porém, com a impermeabilização do solo pelo concreto e pelo asfalto, a água não desce. O sistema de drenagem e bombas utilizado no Guaíba, segundo ele, também não recebeu a devida manutenção para evitar o colapso. “Poderia ter tido um acompanhamento melhor, uma infraestrutura melhor, prevenção, planejamento. Já existem estudos feitos. Só que isso não foi adotado pelo gestor. A política é uma escolha de fazer algumas coisas. Foi escolhido incentivar alguns setores e outros não, talvez seja hora de repensar”, comenta.
“A gente teve no ano passado dois eventos parecidos, em setembro e novembro. Tivemos avisos de precipitação elevada para aqueles dias (do início de maio). Os sinais estão sendo apontados há bastante tempo. Para mim, não teve manutenção do sistema de drenagem e contenção (do Guaíba) não só neste governo, mas há pelo menos 16 anos. Recursos tínhamos, inclusive, federais alocados, mas foram perdidos”, afirma Dekir Larara da Silva, geógrafo, climatólogo e também professor do Câmpus Litoral Norte da UFRGS.
De acordo com ele, dias antes das fortes chuvas, já havia alerta sobre a possibilidade de alto volume de precipitação. “O que ficou claro é que o RS recebeu uma precipitação muito grande e o impacto está associado ao processo de ocupação territorial próximo à água. Na realidade, grande parte dos municípios não possui um sistema de enfrentamento à emergência climática. Não tem sistema de alerta e um conjunto de protocolos necessários para evacuação, para que a população seja avisada e se proteja. Essa tragédia é um acúmulo de deficiências que a gente vem observando e alertando”, ressalta Silva.
Bem como Pierre, o climatólogo considera que houve um afrouxamento dos governantes no cuidado ambiental. “O governo estadual autorizou a construção de barragens em áreas de proteção ambiental algum tempo atrás. Isso é extremamente temerário porque é a preservação da vegetação que vai reter a água nas áreas mais elevadas”, diz Silva.
Hidrografia
“Todo ambiente em torno dos rios é importante de ser cuidado. O Rio Grande do Sul é um estado muito rico em rios e bacias hidrográficas. Existem os Comitês de Bacia, que cuidam delas, mas nem sempre funcionam. Um incentivo para respeitar a lei do Sistema Estadual de Recursos Hídricos seria fundamental”, comenta Guillaume Pierre.
“É uma instância com caráter deliberativo sobre quantidade e qualidade da água, critérios de licenciamento, outorga e também para prever como lidar com enchentes e a estiagem. Esses grupos se reúnem e têm como principal função diminuir conflitos, harmonizar os diferentes usos da bacia de navegação, indústria, critérios que definem prioridade de uso etc.”, explica Rafael Altenhofen, presidente do Comitê da Bacia do Caí.
De acordo com ele, no entanto, a legislação estadual nunca foi completamente implementada. “Infelizmente, os municípios e o próprio estado acabam ignorando o plano de bacias hidrográficas. Os comitês não têm poder executivo de determinar o cumprimento das regras, somente fazemos. Cabe ao Ministério Público fiscalizar, mas não está fazendo isso com eficácia”, desabafa Altenhofen.
Junto a outros dois comitês, o presidente emitiu uma manifestação pública sobre a falta de atenção dada aos grupos e explica como isso contribuiu para a tragédia ambiental atual. “A não implementação das agências de bacia e da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, componentes fundamentais desse sistema, resultou em uma gestão fragmentada, desarticulada e ineficaz, incapaz de planejar e executar as ações necessárias para reduzir vulnerabilidades e, assim, mitigar os efeitos de eventos como o que enfrentamos”, explica.
Por fim, para Altenhofen, é essencial incluir os comitês de bacias nas discussões e evitar ouvir opiniões de profissionais que não são especialistas e não conhecem a hidrografia da região. “O enfrentamento da crise hídrica por parte do RS se limita a projetos de prospecção de novos poços, mas possuem taxa de renovação muito lenta. Outra sugestão que tem sido feita é o desassoreamento, que pode fazer vir à tona metais pesados que estão na lama, fruto de despejo industrial que existia antes do surgimento das leis ambientais. Isso pode gerar a contaminação da água e diminuiria apenas 2cm de inundação, além de ter um custo muito elevado”, conclui.
Soluções
Os especialistas sugerem, então, algumas soluções para a situação crítica que o Rio Grande do Sul enfrenta. “É muito provável que eventos extremos como esse continuem ocorrendo. Por meio da informação, prevenção e planejamento é possível mitigar os impactos”, diz Pierre, que cita como exemplo tecnológico de contenção de cheias a Holanda, que vive há cerca de 300 anos abaixo do nível do mar e possui um excelente sistema de drenagem. “Tecnologia existe, é preciso implementá-la”, acrescenta.
Para Silva, é necessário entender a quais mudanças extremas a região está suscetível. “Especificamente no RS, estamos numa região de fronteira climática entre o ar tropical e o ar de origem polar, que vem da Antártida. O RS vai ter tanto chuvas volumosas em pouquíssimo intervalo de tempo, quanto períodos prolongados com ausência de chuva”, afirma. A maneira de amenizar os efeitos das mudanças climáticas, segundo ele, é o planejamento. “Protocolos geram um nível de planejamento diferenciado. Para poder minimizar os períodos de seca, por exemplo, é necessário preservar a mata nativa e estocar água em poços. Já para enchentes, é preciso de obras de contenção de cheias e a manutenção dos sistemas que já existem. A base do protocolo é a mesma, o que muda são as ações mitigatórias para cada fenômeno”, explica.
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