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Despedida de Mujica deixa uruguaios órfãos e evidencia um país em busca de novas lideranças

Velório reuniu uma multidão no Palácio Legislativo de Montevidéu; o ex-presidente deixou uma legião de fãs de todas as gerações
Por Agência O Globo
Os uruguaios ficaram “guachos”, termo usado no país para se referir a pessoas ou animais órfãos, com a morte do ex-presidente José “Pepe” Mujica, que ontem foi despedido com um cortejo pela cidade e um velório no Palácio Legislativo de Montevidéu, seguindo à risca as instruções determinadas pelo próprio Mujica antes de morrer.
Uruguaios de todas as idades acompanharam a peregrinação do caixão empurrado por cavalos que passou por pontos escolhidos por Mujica, entre eles a sede de seu partido, o Movimento de Participação Popular (MPP), integrante da governista Frente Ampla.
— Cada vez que desaparece um líder, a incógnita é como se sustenta essa construção da qual ele foi protagonista central. Esse é o desafio que temos os atores políticos — disse o presidente, na tarde desta quarta-feira, no velório.
Orsi foi quem recebeu o caixão, e acompanhou a viúva de Mujica, a ex-vice presidente Lucia Topolansky, desde o início da cerimônia. O chefe de Estado, empossado em 1 de março passado, é considerado um herdeiro político do falecido chefe de Estado, mas é ciente de que substituir Mujica é algo impossível.
Sua austeridade e simplicidade extremas, suas reflexões sobre o consumismo, sobre o valor da vida e a necessidade de priorizar os afetos e buscar permanentemente a felicidade penetraram na alma de muitas pessoas no país. Pessoas de esquerda, centro e direita.
No cortejo e no velório essas pessoas se misturaram, comovidas pelo fim de uma vida marcada por muito sofrimento, mas, em momento algum, pelo rancor. Mujica nunca deixou de ser um guerrilheiro para muitos uruguaios, afirmam Antonio e Susana Dalona, um casal de aposentados que participou do cortejo. Mas, mesmo com esse passado que o marcou, frisaram ambos, “ele fez todo mudo pensar”.
— Ele deixou uma lição muito importante para todos: parar de querer sempre ter mais e mais. Ele era um filósofo da vida, e até mesmo seus adversários reconheciam a importância de suas reflexões e dos exemplos que dava em seu dia a dia. Nunca houve sequer uma denúncia contra Mujica — afirma Antonio, que votou em Mujica, mas se considera independente politicamente.
Pensar diferente não um problema para o ex-presidente, que tinha uma personalidade forte e não fugia de uma briga. Um dos dirigentes com os quais manteve discussões admitidas publicamente por ambos foi o ex-presidente Luis Lacalle Pou (2019-2024). Ontem, Lacalle Pou foi um dos primeiros em chegar ao velório de Mujica.
— Tivemos diferenças, mas hoje é o momento de resgatar as coisas boas — declarou o ex-chefe de Estado.
Antes de Mujica, o Uruguai perdeu o ex-presidente Tabaré Vázquez (2005-2010 e 2015-2020) e o ex-ministro da Economia e ex-vice presidente Danilo Astori. Os três eram os principais referentes da esquerda uruguaia das últimas décadas. O país não ficou apenas órfão de Mujica, ficou sem lideranças fortes na coalizão de governo. O próprio Orsi reconheceu que não será fácil para ele e seus companheiros assumir o comando da esquerda uruguaia sem o apoio de suas figuras de proa desde a redemocratização do país, em 1985. E dos três, Mujica foi, sem dúvida, o mais popular.
O ex-presidente cativou mães e filhas com 30 anos de diferença, como Paola Calamaro e Julieta, de 50 e 20 anos respectivamente, que ontem caminhavam pelo centro de Montevidéu tentando encontrar o caminho para o Palácio Legislativo. Elas moram no departamento (estado) de Canelones, onde Orsi foi duas vezes prefeito. Gostavam do estilo de Mujica, e de sua defesa incansável da justiça social.
— Sinto uma grande tristeza, mas estou feliz porque tivemos um presidente como ele. Era uma referência. Seria bom que outros fossem como ele — apontou Paola, observada com atenção pela filha. Julieta não pretendia opinar, disse que era tímida, mas quando sua mãe começou a falar sobre Mujica ela se entusiasmou:
— Frases como “se você cair, tem que sempre se levantar” marcaram minha geração. Eu teria votado nele. Espero que alguém siga seus passos — disse Julieta.
Na era dos influenciadores digitais, Mujica foi, talvez sem se propor nisso, um grande influencer da juventude de seu país e de seguidores ao redor do mundo. Em seu discurso de renúncia ao cargo de senador, em outubro de 2020, o ex-presidente declarou que “triunfar na vida não é vencer.
Triunfar na vida é se levantar e voltar a começar cada vez que você cair”. Ontem, nas ruas de Montevidéu, jovens vestiam camisetas com essa e outras frases que fazem parte do repertório de Pepe, como é chamado por seus compatriotas. No dia de seu velório, uma das mais usadas foi: “Fui embora, mas voltei”.
Na fila do velório, o policial aposentado Juan (que preferiu não dar seu sobrenome), disse que “ter outro líder como Mujica é possível”. Com a voz embargada, Juan, que foi líder sindical, assegurou que “ele tentou fazer um país e um mundo melhor, faltam mais seres humanos como Pepe Mujica.
Perto dele estava a enfermeira Patrícia, que disse ter tratado de Mujica numa internação no Hospital Militar de Montevidéu, em seu período como presidente do país. Mujica tinha uma doença autoimune, e muitas vezes passou por tratamentos médicos.
— Ele sempre me perguntava se eu tinha comido. Não era um paciente fácil, no fundo, sempre fez o que queria. Mas era um ser humano excepcional. Vai ser difícil viver sem sua palavra e seu exemplo — lamentou Patricia.
Ontem, os políticos e analistas do país não debateram o legado político ou econômico de Mujica. Nos canais de TV, emissoras de rádio e nas ruas só se falava sobre seu legado como ser humano, sua filosofia de vida, sua austeridade, e, essencialmente, sua coerência como dirigente e como pessoa.
Não foi um dia de lembrar alguns escândalos ocorridos em seu governo, mas sim de destacar a perda para o Uruguai de um homem que exportou lições de vida. Suas frases, seus discursos mais famosos, sua capacidade de ouvir e discutir, a orientação que deu até o final aos dirigentes de seu partido, incluído o atual presidente.
O clima que se respira no Uruguai vai além do luto pela morte de um chefe de Estado. O país perdeu um chefe espiritual, político, um pai para muitos, um avô para outros. Sua partida deixou um buraco na alma de muitos uruguaios que, agora, afirmaram várias das pessoas ouvidas pela reportagem do Globo, perderam uma referência central em suas vidas. Do presidente para baixo, será necessário aprender a viver sem Mujica.

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