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Quem controla o poder
“Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir, por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague”. Chico Buarque, em Deus lhe pague.
A desigualdade social pode ser revertida com um combate eficaz à pobreza. Especialistas como Anthony Atkinson apontam como exemplo o Estado do bem-estar social, que se desenvolveu na Europa durante a social-democracia, aproximadamente entre 1945 e 1980. Esse modelo virtuoso baseia-se em três pilares: salários que ocupam maior proporção da renda nacional (ajustados em termos reais), programas de redistribuição de renda para os mais necessitados, como o BPC e o Bolsa Família, e a oferta de serviços públicos de qualidade nas áreas da educação e saúde.
Por trás desse cenário, está uma política contínua de crescimento econômico fundamentada na responsabilidade fiscal, com superávits primários capazes de evitar o aumento da dívida pública. A questão é: por que o Brasil não consegue assegurar estabilidade a uma política de desenvolvimento que, ao mesmo tempo, reduza as disparidades sociais?
O pensamento social brasileiro conta com grandes intérpretes, como Gilberto Freyre, Celso Furtado e Raymundo Faoro. Recentemente, a Companhia das Letras lançou uma nova edição de Os Donos do Poder, do autor Faoro. No livro, ele destaca que o poder centralizado no Brasil criou um capitalismo orientado, baseado em privilégios políticos e oligopólios econômicos, estabelecendo uma aliança entre setores produtivos e interesses enraizados no poder.
O poder político não é exercido de forma abstrata em favor de classes ou setores sociais, mas beneficia grupos que se associam no poder e tomam decisões junto à burocracia pública que acabam sendo apropriadas para interesses privados. Na prática, temos um Estado patrimonialista que funciona para seu próprio benefício, sustentado por uma elite burocrática que Faoro denominou de donos do poder.
Segundo Faoro, o Brasil fez, ao longo de seus seis séculos de história, uma trajetória circular do patrimonialismo ao estamento, sustentado por uma estrutura patrimonial que se repete, concedendo benefícios por meio de políticas redistributivas e consolidando a lógica capitalista.
O Estado brasileiro, para ele, está acima das classes sociais e até da própria nação, as quais ele não reconhece mutuamente. O patrimonialismo tradicional tem origem no patriarcalismo ou no carisma, mas Faoro ressalta uma terceira forma: o patrimonialismo estamental, fruto das afinidades entre o Estado e setores mercantis, dentro do horizonte do capitalismo orientado, voltado para objetivos específicos.
Faoro inspira-se em Max Weber, porém rejeita a racionalidade típica da burocracia moderna, apresentando uma herança do patrimonialismo ibérico que absorveu o avanço do capitalismo, sem abandonar a mecânica patrimonial. Seu modelo admite a possibilidade de mudança, mas reforçada pela inclusão de novos condôminos, uns eleitos, outros qualificados pelo mercado, mas todos coniventes.
Observando a história do Brasil, podemos aplicar o modelo de Faoro e identificar os estamentos que exerceram o poder em diferentes períodos: D. João VI e seu reino; Getúlio Vargas e seus militares, bacharéis do PSD e sindicatos; Juscelino Kubitschek e a indústria automotiva paulista com sua base política mineira; o período militar comandado por militares, empresários e burocratas; Sarney com liberais da antiga UDN e corporações públicas; Fernando Henrique Cardoso com a sociologia paulista e a aliança neoliberal; Lula com empreiteiras, sindicatos e artistas; e Bolsonaro com empresários, evangélicos e setores extremistas de direita.
O que se observa é a convergência entre diferentes burocracias: do Estado, da iniciativa privada, de sindicatos e de religiões, além do compartilhamento do poder exercido por esses estamentos burocráticos.
Retornando ao início, a desigualdade social permanece profunda e inaceitável, confirmando a análise de Faoro. Ao longo de seis séculos, os estamentos no poder parecem ignorar a lição de Weber, que ensina duas éticas fundamentais: a ética de princípios, que orienta decisões segundo critérios morais e objetivos, e a ética da responsabilidade, que indica agir conforme o dever da função e a lei.

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