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De Johanna a Mariangela, as Mulheres Que Conectaram o Brasil a Prêmios Nobel para o Agro

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Mariangela Hungria recebe hoje o World Food Prize nos EUA, chamado de “Nobel da Agricultura”; Johanna Döbereiner, se estivesse viva, estaria na primeira fila aplaudindo a discípula

 

Por Forbes Agro

 

Hoje é um dia especial para a pesquisadora da Embrapa Soja Mariangela Hungria, 68 anos, laureada da edição de 2025 do Prêmio Mundial de Alimentação – The World Food Prize (WFP) –, reconhecido globalmente como o “Nobel da Agricultura” e o mais aguardado no setor.

O feito dela é inédito para o Brasil. Mariangela está nos EUA e a partir das 21 horas (horário de Brasília), terá em mãos o símbolo dessa conquista durante a Cerimônia de Premiação dos Laureados, no Capitólio de Iowa, em Des Moines, um imponente edifício de cúpula dourada construído entre 1871 e 1886, conhecido por seu acervo artístico de murais, vitrais, esculturas e uma biblioteca com 100 mil livros, incluindo obras Benjamin Franklin, figura que desempenhou um papel crucial na fundação dos Estados Unidos.

O prêmio que Mariangela recebe nesse prédio histórico é concedido pela Fundação World Food Prize e celebra o impacto positivo das pesquisas da cientista brasileira e sua contribuição ao desenvolvimento de insumos biológicos para a agricultura brasileira.

“É o reconhecimento da resistência e da perseverança da minha vocação desde criança, de produzir alimentos”, disse Mariangela. “Lá no começo da minha carreira ninguém levava a sério os biológicos. Todo mundo dizia que eu não teria futuro, que aquilo era coisa de pequena agricultura. Mas eu tinha certeza do caminho que queria seguir.”

O elo entre duas pioneiras

A história de Mariangela Hungria carrega um fio invisível que a liga a outra mulher extraordinária da ciência brasileira: Johanna Döbereiner, nascida em 1924 na antiga Tchecoslováquia e radicada no Brasil a partir dos anos 1950.

Johanna foi a primeira a provar que o uso de bactérias poderia substituir os fertilizantes nitrogenados, impulsionando a produtividade e reduzindo impactos ambientais. Seu trabalho com a fixação biológica de nitrogênio (FBN) abriu uma nova era na agricultura tropical. “Johanna sempre foi uma inspiração, é a pioneira e eu admirava muito o seu trabalho”, diz Mariangela.

Embrapa
Johanna Döbereiner, uma cientista que reescreveu a história

Foi graças à descoberta de Johanna que o Brasil se tornou o maior produtor de soja do mundo. O país ultrapassou os Estados Unidos na safra 2019/2020. O fato é que Johanna enfrentou resistências em um ambiente predominantemente masculino e soube se impor pelo rigor técnico e pela convicção de que a ciência precisava servir ao campo.

“Na década de 1960, ir contra a adubação química era quase um sacrilégio. Só muito tempo depois vi que nossas pesquisas permitiam uma produção mais barata e também mais ecológica”, declarou Johanna em uma entrevista de 1996 concedida à Revista Veja, da Editora Abril.

Seu impacto foi tão profundo que Johanna Döbereiner foi indicada ao Prêmio Nobel de Química em 1997, por suas descobertas na microbiologia agrícola e na fixação biológica de nitrogênio — uma das raras cientistas latino-americanas a alcançar esse nível de reconhecimento internacional.

Mariangela cresceu profissionalmente sobre essa base. Ela reconhece a herança científica de Johanna, mas trilhou o próprio caminho ao ampliar o alcance dos biológicos e transformá-los em um instrumento de soberania nacional. “Tivemos sorte na década de 1960, quando a soja começou a expandir comercialmente, com dois pesquisadores que lutaram muito para que os biológicos fossem considerados. Foram gerações seguidas trabalhando com o mesmo propósito”, diz ela.

De Itapetininga ao mundo

Mariangela nasceu em 1958, em Itapetininga (SP), em uma família de educadores. “Desde criança queria muito ser cientista e ajudar as pessoas a não passarem fome”, afirma. Formada em agronomia, entrou para a Embrapa Soja, unidade localizada em Londrina (PR), nos anos 1980 e construiu uma carreira de 40 anos dedicada à microbiologia do solo e à fixação biológica de nitrogênio. Hoje, suas tecnologias estão presentes em mais de 40 milhões de hectares no Brasil.

Ela é categórica ao dizer que o país tem capacidade de liderar a transição global para uma agricultura sustentável. “O futuro do alimento e da energia tem sotaque brasileiro. Temos três safras, integração entre lavoura, pecuária e floresta, e tecnologia de ponta. Se conseguirmos levar esse padrão também ao pequeno e médio produtor, o Brasil terá um novo ciclo de produtividade e sustentabilidade.”

Ciência como ato de resistência

Tanto Johanna quanto Mariangela enfrentaram preconceitos por escolher um campo dominado por homens. Mariangela lembra com franqueza: “O único conselho que deu certo, e que passo para os jovens, especialmente às jovens mulheres, que não acreditem nos nãos que vão ouvir. Porque ainda há muito preconceito. Mulher pode e deve estar na ciência.”

Johanna, décadas antes, já tinha consciência desse obstáculo. Filha de um professor de química, refugiada de guerra e naturalizada brasileira em 1956, ela se dizia uma “camponesa no laboratório”. Seu rigor e simplicidade inspiraram gerações. “Não faço nada sozinha. Tudo é fruto de muita troca entre nossa equipe”, costumava repetir. Ela faleceu em 5 de outubro de 2000, em Seropédica (RJ), aos 76 anos.

Guardadas as proporções do tempo, Johanna e Mariangela representam um mesmo legado. A primeira semeou o conceito de que a agricultura brasileira poderia crescer sem destruir. A segunda transformou esse conceito em sistema produtivo, ampliando o uso de biotecnologias e consolidando o Brasil como líder global em insumos biológicos.

“Estamos só no começo”, diz Mariangela. “Embora sejamos líderes em biológicos, o uso ainda não chega a 15% em relação aos químicos. Já temos tecnologia pronta para chegar a 60%. As previsões no mundo inteiro são de crescimento.”

Um reconhecimento global

Pela história que carrega, a homenagem desta quinta-feira no Capitólio de Iowa vai muito além estatueta criada pelo designer Saul Bass, que já trabalhou para ícones do cinema como Alfred Hitchcock, Otto Preminger e Martin Scorsese. A peça concebida por Bass traz uma esfera simbolizando o mundo; o desenho da folha, sua comida; e uma tigela, a nutrição de um povo.

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A estatueta World Food Prize criada pelo designer Saul Bass

A estatueta que em breve desembarca em solo brasileiro é o reconhecimento de uma jornada científica que começou com Johanna Döbereiner e floresceu com Mariangela Hungria, duas mulheres que provaram que o solo fértil da ciência também é lugar de coragem. O World Food Prize Foundation destacou que as descobertas de Mariangela “transformaram o Brasil em modelo mundial de eficiência agrícola e sustentabilidade”. O prêmio a coloca ao lado de nomes históricos como Norman Borlaug, pai da Revolução Verde, e Catherine Bertini, ex-diretora do Programa Mundial de Alimentos da ONU.

Veículos como Forbes US e Food Tank classificaram Hungria como uma das vozes mais influentes da agricultura regenerativa global. O jornal The Guardian disse que o Brasil, “por meio de sua liderança em ciência tropical, redefine a forma de produzir alimentos sem comprometer o planeta”.

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