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Inferno são os outros: cidades europeias fazem guerra ao turismo
Veneza, Barcelona e Amsterdã se revoltam contra turistas bagunceiros, bêbados ou simplesmente excessivos; na França, ao contrário, somem os iates
Foi uma espécie de toque especial no verão infernal para os turistas de férias na Espanha, principalmente britânicos. Os infelizes já estão atormentados por atrasos e filas decorrentes de maiores controles exigidos pela União Europeia e de greve de funcionários do aeroporto de Barcelona (até que vote o plebiscito independentista, ou mesmo depois dele, a Catalunha continua a ser uma região espanhola).
Para completar o desgosto de agosto, o mês das férias escolares de verão, a excepcional onda de calor recebeu um nome autoexplicativo: Lúcifer.
O grupo Arran, um partido de esquerda que até participa do governo catalão, levou os protestos para Valencia e as Ilhas Baleares. Anarquistas e mascarados, em princípio, fazem tudo errado.
Mas é difícil contestar um de suas pichações: “O turismo está destruindo Maiorca”. As ilhas plantadas no mar de esmeraldas líquidas viraram um depósito do turismo de baixo custo e alto nível anti-social, com bares emendados uns nos outros até onde a vista alcança e a polícia deixa.
Mesmo nessa época, de férias em família, a bebedeira é brava. Baladas de universitários e despedidas de solteiro propiciam espetáculos deprimentes.
Nada a ver com as fantasias que fazem parte da chance a que todos os jovens têm direito de fazer papel ridículo (já apareceram até uns travestidos de “salva-vidas brasileira”, com maiô vermelho de Pamela Anderson).
Mas quando a prefeitura de um lugar como Magaluf, um dos mais populares entre jovens ingleses, precisa proibir concursos de sexo oral em bares e defecação em lugares públicos a coisa é feia.
O descontrole da bebida barata não ajudou em nada a vida de uma garota de 18 anos filmada participando de um concurso desses com exatamente 24 rapazes. O prêmio era um drinque.
A polícia inglesa fez até um acordo com prefeituras de Maiorca e manda uns agentes para ajudar a manter a ordem, frequentemente reforçada a cassetetes por policiais espanhóis. As baladas descontroladas agora estão aparecendo em cidades de praia de Portugal, com os consequentes confrontos.
CARDÁPIO DE MACONHA
Férias baratas, companhias aéreas de baixo custo e a concorrência aos preços muitas vezes absurdos dos hotéis europeus oferecida pelo Airbnb deveriam ser a realização dos ideais igualitários.
A realidade, no entanto, tem sempre maneiras de desmoralizar muitos idealismos. O aluguel de apartamentos temporários, por exemplo, é um dos principais motivos de revolta em cidades altamente turísticas.
Os imóveis rendem muito mais com a alta rotatividade dos turistas e ficam caros demais para os moradores locais. A “turistização” acaba, justamente, com o maior atrativo de lugares encantadores, como a Île Saint-Louis e sua formidável localização sobre o Sena: os moradores desaparecem e, com eles, some o charmoso comércio local.
O ruído constante das malas de rodinhas faz muitos parisienses pensar na definição de Sartre sobre a infernal impossibilidade de controlar os outros seres humanos, dos quais, ao mesmo tempo precisamos.
O turismo entra com 11% da economia espanhola e 7% da francesa e é muito importante no mercado de trabalho temporário. O impacto dos atentados terroristas em Paris e Nice foi doloroso.
Todas as forças que deveriam ser do bem, mas acabam fazendo o mal, são altamente concentradas em Veneza. A cidade, única em sua delicadeza rendilhada sobre as águas nos séculos de ouro, tem 55 mil habitantes e recebe 60 mil turistas por dia.
É possível não detestá-los, mesmo que muitos precisem deles para viver? É possível olhar o tamanho mastodôntico dos navios de cruzeiro que despejam visitantes por algumas horas e não se revoltar com a desproporção grotesca em relação aos palacetes, às pontes e às cúpulas das igrejas?
Veneza proibiu a abertura de novos hotéis na parte histórica. Amsterdã seguiu pelo mesmo caminho, também pelo problema de falta de proporção entre a população local e o volume de visitantes. A cidade tem 800 mil habitantes 5,2 milhões de turistas por ano.
Uma parte quer ver, claro, Van Gogh. E outra quer descer do avião direto para ficar grogue no os cafés com cardápio de maconha e hashishe, feito com a resina da mesma cannabis.
CRISE EM SAINT-TROPEZ
No Sul da França, o problema atualmente é o oposto: os turistas sumiram. Não aqueles de malas de rodinhas, que procuraram os alojamentos mais baratos e comem sanduíche na praia. Mas os ricos que têm ou alugam iates e, a cada vez que param, despejam dezenas de milhares de euros em restaurantes caros, comércio de luxo e combustível para seus caros brinquedos.
O aumento de 20% do imposto sobre combustível é um dos motivos que está tocando os barcos para Espanha e Itália. Para dar uma ideia: um iate de luxo gasta, em média, 100 mil euros cada vez que para para “encher o tanque”.
Os prefeitos da região conhecida como PACA – Provence, Alpes Marítimos, Côte d’Azur – fizeram o habitual dos políticos franceses: um apelo ao presidente Emmanuel Macron. Deram até números: o abastecimento de um iate de 42 metros na Itália em vez da França, representa uma economia de 21 mil euros por semana.
Até os muito ricos se deixam afetar pela diferença. A venda de combustível caiu 40% nas marinas francesas. Em Saint-Tropez, onde entra verão e sai verão e o turismo massa não consegue destruir o charme insubstituível da cidadezinha, a ancoragem no pequeno porto caiu 30%.
Também está atrapalhando um aperto do governo francês, eternamente ávido por impostos, nas contribuições trabalhistas de empregadores e empregados do ramo, no caso tripulantes profissionais que declaravam viver no exterior, por causa das viagens constantes, mas têm família na França. Os impostos patronais subiram de 15% para 55%.
O custo adicional sobre uma tripulação fixa de sete pessoas foi calculado em 300 mil euros por ano. Com a vantagem de levantar âncora e procurar outras paragens, os donos de iates estão fazendo exatamente isso.
É fácil ironizar como é grave a crise em Saint-Tropez, Antibes e outros portos badalados quando os restaurantes fervem de gente bronzeada, as toalhas se espremem nas praias e o azul profundo do Mediterrâneo, visto do alto dos rochedos vermelhos, parece um vídeo game paradisíaco devido à quantidade de barcos.
DISNEYLÂNDIA DE RICOS
Mas o caso dos iates parece ser um teste interessante para Macron: o vai e vem de iates, ao sabor da voracidade fiscal de diferentes governos, não é novidade na França.
Nova é a disposição do jovem presidente de dinamizar as leis trabalhistas para, justamente, rejuvenescer a economia. Seria preciso muita coragem para mexer em impostos de forma a beneficiar capitães que ganham de 100 mil a 300 mil euros por mês.
Sem contar os próprios donos dos milionários brinquedos que proporcionam liberdade de movimentos, privacidade, segurança e incomparável exibição ambulante de status. É inconcebível um presidente francês fazer algo que favoreça um Roman Abramovich, por exemplo.
Dono do Eclipse, hoje avaliado em 1,5 bilhão de dólares, o bilionário russo baseado na Inglaterra passou a despertar mais curiosidade ainda por seus brinquedos marítimos. Ele acabou de anunciar que vai se divorciar de Dasha Zhukova, também russa e também bilionária, embora linda, ao contrário dele.
Como será a partilha de bens é um assunto comentado do Caribe à Riviera, nas marinas e ilhas que são a Disneylândia dos bilionários.
Nas Disneylândias dos mortais comuns, como Majorca, Barcelona ou Amsterdã, os turistas são sempre os outros. Nós mesmo somos sempre viajantes educados, ilustrados e interessados mais nos tesouros artísticos do que no estoque dos bares.
Ou preferimos acreditar nisso. Para os locais afetados em sua vida normal, somos todos invasores alienígenas com quem é um inferno conviver
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