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Caso de doméstica escravizada por desembargador mobiliza autoridades

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Sônia Maria de Jesus trabalhou por 40 anos em regime análogo à escravidão na casa do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis

Ministério Público Federal, entidades de defesa dos direitos humanos, organizações não governamentais (ONGs), a família e a sociedade civil aguardam que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) inclua na pauta deste ano o julgamento do caso de Sônia Maria de Jesus. Negra de 51 anos, cega de um olho, surda, não oralizada e não alfabetizada em Libras, nem em português, ela foi resgatada após trabalhar durante 40 anos na casa do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis, em condições análogas à escravidão.

Sônia Maria foi resgatada por auditores fiscais do trabalho em junho de 2023. Mas, dois meses depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou a decisão de resgate, por entender que havia insuficiência de provas, e autorizou a volta da mulher à casa dos patrões. Nos registros do combate moderno ao trabalho escravo, iniciado em 1995, é a primeira vez que ocorre um “desresgate”, termo que passou a ser usado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), responsável pelo caso. Com a repercussão do caso, Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina, entraram com um pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva de Sônia.

Um dos procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) que atuou no resgate de Sônia relembrou os detalhes da operação. “Nos deparamos com aquela senhora com um mioma no útero, com apenas três dentes e raízes infeccionadas. Tivemos que agir rapidamente e levá-la para fazer tratamento médico urgente”, disse.

O procurador criticou o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva de Sônia. “Como ele pode alegar que tratava aquela senhora como filha, se ela nunca teve acesso a educação, nunca saiu de casa para interagir com outras pessoas, nunca teve acesso ao ensino de Libras, mesmo morando a 700 metros de uma unidade da Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae)?”, questionou.

O procurador contou que o desembargador Jorge Luiz de Borba é pai de quatro filhos: uma CEO de uma empresa americana, uma advogada, uma ginecologista e um engenheiro. “Como ele pode dizer que Sônia é da família? Esse é o mesmo tratamento que ele deu às filhas? Isso é uma hipocrisia profunda. Essa ação de paternidade socioafetiva é uma falácia”, condenou.

O caso está dividido entre diferentes instâncias judiciais. A questão criminal caminha no STJ, com o ministro Mauro Campbell Marques, enquanto o habeas corpus e as ações trabalhistas estão na Justiça do Trabalho sob a responsabilidade do ministro André Mendonça, no STF. Outras ações, como a de paternidade socioafetiva, alegada pela família Borba, seguem em andamento, em Florianópolis.

BRA-Trabalho escravo

BRA-Trabalho escravo(foto: Valdo Virgo)

Pedido de urgência

Em setembro de 2023, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou um pedido de urgência para o STF incluir na pauta o julgamento do habeas corpus em favor de Sônia Maria de Jesus. Mas o caso ainda aguarda decisão da 2ª Turma do tribunal. A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou nos autos em novembro de 2023, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) prestou as informações solicitadas pela Suprema Corte. “A causa está madura e pronta para julgamento”, ressalta a Defensoria Pública.

Segundo a DPU, a demora no julgamento agrava as violações aos direitos de Sônia, que permanece em situação de vulnerabilidade. Além disso, na avaliação da Defensoria, a lentidão transmite uma mensagem negativa no combate ao trabalho escravo contemporâneo, em contrariedade aos princípios constitucionais e tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Para o defensor público William Charley, que participou diretamente da operação de resgate de Sônia, o caso reflete as distorções do sistema judicial brasileiro. “Não faz sentido. Em qualquer outro contexto, como no caso de violência doméstica ou sequestro, a vítima nunca retornaria ao agressor. Mas aqui, essa foi a decisão”, criticou Charley.

Ele explica que o habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União no STF para um novo resgate foi negado pelo ministro André Mendonça, o que mantém Sônia na residência da família Borba até o julgamento final.

Cecília Asperti, advogada de Sônia Maria, considera insustentável o argumento de vínculo familiar entre sua cliente e os patrões da mulher. “Não acreditamos que Sônia veja nos Borba uma família, mas veja apenas o dever de servi-los. Sabemos que Sônia reconhece suas irmãs mais velhas, Aparecida e Marlene, e por isso, compreende que é parte da família Jesus, mas sem entender que essa dinâmica é marcada por exploração”, pontuou.

Para Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o trabalho escravo, o resgate de Sônia encontrou evidências claras de sua condição de escravidão, apesar das tentativas de maquiar a realidade. Ele relata que o desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa tentaram criar uma narrativa de que Sônia era tratada como um membro da família.

No entanto, as investigações revelaram que ela vivia em um quarto improvisado, sem documentação, sem salário e sem acesso à educação ou à Língua Brasileira de Sinais (Libras). “Essa estratégia (de dissimulação) não é única; é a mesma que vemos na Amazônia, com fazendeiros que dizem ter tirado trabalhadores do ‘cárcere da pobreza’, naturalizando a exploração”, aponta.

Decisão precipitada

Para o advogado penal Belisário dos Santos Jr., ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), o caso de Sônia Maria de Jesus não deveria ser decidido de forma monocrática. Ele explicou que, devido à complexidade e ao delicado estado de saúde da vítima, seria necessário realizar uma avaliação independente, conduzida por psicólogos e especialistas para avaliar com isenção onde seria o melhor lugar para ela ficar. “É necessário determinar com urgência, por meio de perícias e análises psicológicas, qual seria o ambiente mais saudável para ela viver daqui para frente”, defendeu.

Santos acredita que houve precipitação na decisão que autorizou o retorno de Sônia à casa dos Borba. Ele sugere que o STF promova uma audiência para discutir amplamente as melhores condições para o futuro da vítima. “Não deve ser uma decisão que satisfaça A ou B, ou que atenda aos desejos de um lado ou outro. Não é sobre quem vai ganhar ou perder. É sobre a vida dessa mulher de 51 anos, que não tem discernimento nem poder de decisão”, destacou.

Família relata dificuldade de se encontrar com a vítima

Marta de Jesus, irmã mais jovem de Sônia, 34 anos, contou que o primeiro contato dos irmãos biológicos foi no final de setembro de 2023. O encontro ocorreu na sede da Polícia Federal, por determinação do ministro do Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell, porque, segundo ela, a família Borba estava se recusando a permitir o primeiro encontro.

No entanto, após a decisão da Justiça de mandar Sônia de volta para a casa do desembargador, Marta de Jesus afirma que passou a encontrar dificuldade em falar com a irmã. “Nossa comunicação é unicamente com os advogados e por e-mail. Não existe um contato por telefone. Não existe um contato direto com nossa irmã. Os advogados deles falam com nossas advogadas apenas por mensagem de e-mail, e eles respondem quando querem e no tempo que querem”, queixou-se.

Maria de Jesus disse também que, devido a restrições financeiras, os encontros estão ficando cada vez mais raros. Todos os irmãos trabalham e, além da dificuldade de faltar ao serviço, há o alto custo das passagens de São Paulo, onde moram, para Florianópolis. “Pedimos que Sônia viesse nos visitar e passar o Natal conosco. Eles alegaram que não seria possível. No dia 20 de dezembro, recebemos um e-mail dos advogados autorizando nossa visita à Sônia no dia 24 de dezembro. As passagens são caras, e nós somos trabalhadores. Não temos condições de comprar uma passagem em tão pouco tempo”, disse Marta.

A irmã de Sônia ressaltou que, apesar de receber ajuda para a compra das passagens pela Cáritas, organização que ajuda famílias em vulnerabilidade, o prazo de quatro dias não permite que a instituição consiga adquirir as passagens, em razão do alto custo.

Nas redes sociais, a família, amigos, artistas e influenciadores digitais alimentam a campanha “Sônia Livre”, que já conta com mais de 32 mil seguidores e tem o objetivo de reunir assinaturas e divulgar um dos casos de trabalho análogo à escravidão mais absurdos da história do país. A petição já reúne mais de 10 mil assinaturas e pede aos ministros a libertação de Sônia Maria de Jesus.

O Correio entrou em contato com o escritório de advocacia da família Borba, que, por nota, informou: “Por se tratar de caso sob segredo de Justiça, em respeito às instituições e ao Judiciário, a família mantém a posição de não tecer comentário público, em absoluto respeito ao devido processo legal”. A reportagem procurou a assessoria de imprensa do STF e do STJ, mas não obteve resposta.

É preciso denunciar

O combate ao trabalho escravo começa com a denúncia, que pode ser feita por canais como Disque 100, 190, ou diretamente a órgãos como o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) ou Defensoria Pública da União (DPU). A Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) avalia os casos e, a depender, aciona as equipes responsáveis.

Membros da Polícia Federal e a Defensoria Pública podem ser mobilizados para garantir a segurança e a eficácia da ação de combate. Após o resgate, as vítimas recebem suporte imediato, incluindo acolhimento emergencial, atendimento médico, regularização de documentos e acesso ao seguro-desemprego.

No pós-resgate, o foco é a reintegração social. As vítimas são encaminhadas para programas de assistência social, saúde, educação e emprego. Caso desejem retornar às suas cidades de origem, a rede local é mobilizada.

O procurador do Trabalho Thiago Lopes de Castro, coordenador nacional do grupo Trabalho Doméstico do MPT, relata os desafios no pós-resgate das vítimas de trabalho escravo doméstico.

Segundo ele, essas pessoas, muitas vezes retiradas de suas famílias biológicas ainda na infância e submetidas a décadas de exploração, carecem de uma rede de apoio adequada. “Enquanto trabalhadores rurais frequentemente retornam às suas comunidades, as vítimas do trabalho doméstico geralmente não têm para onde ir, tornando o atendimento social ainda mais crítico”, afirmou.

Correio Braziliense

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