… e com a de entes queridos. Novo livro da geriatra Ana Claudia Quintana Arantes tem sugestões para se preparar para essas situações dramáticas
Ana Claudia em seu consultório no Hospital Albert Einstein: A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver traz também histórias de pessoas atendidas por ela (Ricardo Matsukawa/VEJA.com)
Encarar a morte não é uma tarefa fácil. Mesmo, seguindo o clichê, sendo essa a única certeza da vida, poucas pessoas estão preparadas para garantir que se trate de um processo tranquilo (na medida do possível, evidentemente). Em um ranking global elaborado pela revista inglesa The Economist em 2015, o Brasil ocupa a 42ª posição, atrás de países como África do Sul, Uganda e Jordânia, dentre as 80 nações que oferecem as melhores condições a familiares e pacientes que lidam com doenças terminais. Isso quer dizer que além do fato de não se viver bem em muitos desses locais, também não se falece bem neles. Para chegar à essa classificação, foi avaliada a qualidade de cuidados paliativos ao redor do mundo, pela seguinte definição do termo, estabelecida pela Organização Mundial de Saúde: são as “abordagens ou tratamentos que melhoram a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida”. É a dificuldade em lidar com essas situações dramáticas que motivou a médica geriatra paulistana Ana Claudia Quintana Arantes a escrever A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver (Casa da Palavra, 192 páginas, 29,90 reais), lançado nesta semana.
Ana Claudia Quintana Arantes, de 48 anos, dedicou suas duas décadas de profissão à área dos cuidados paliativos. Sua motivação surgiu justamente por notar, durante a faculdade, a falta de interesse de professores e colegas pelo assunto. No livro, a autora destaca como os médicos costumam se atentar mais em sedar, apenas, os pacientes para evitar transtornos do que em ajudá-los, de fato, a encarar a espera pela morte. Isso mesmo que apenas 5% a 10% dos casos terminais precisem da sedação paliativa.
Abaixo, VEJA relata casos de doentes terminais – e de como eles lidam com suas condições – e seleciona dicas elaboradas por Ana Claudia para antever e se preparar diante da expectativa da morte.
1ª cuidado: não seja um “zumbi existencial”
A geriatra usa o termo “zumbis existenciais” para definir indivíduos que vivem sem a noção de que um dia irão morrer. “As pessoas se veem como imortais. O efeito é que noto, todos os dias, pacientes, falecendo, que demonstram só ter dado valor à própria vida quando descobriram que estavam prestes a perdê-la”, diz Ana Claudia.
O primeiro cuidado, portanto, antecede o diagnóstico de uma doença terminal. É precisar realizar exames de rotina, exercícios físicos, dormir oito horas por dia e todas aquelas típicas recomendações para se levar uma vida produtiva e feliz – com a consciência de que isso não vai evitar que a vida chegue ao fim. Assim, o senso de mortalidade acaba por preparar as pessoas para o momento, inescapável, de encarar a morte.
Completa Ana Claudia: “Parece que a maioria só resolve procurar por uma vida melhor, saudável, bem quando se depara com a perspectiva da morte. O que deveria ocorrer é todos estarmos sempre atentos, dando nosso melhor, para recebermos bem nosso fim quando ele chegar”.
2º cuidado: sempre há algo a fazer
No livro, a autora destaca como usualmente pacientes terminais e familiares se deparam com a afirmação “não há mais nada a fazer”. Para ela, no entanto, o principal é pensar na pessoa com a doença, e não só na cura do mal, por si só. Para tanto, a partida é não aceitar a contestação negativista e buscar formas de ajudar o indivíduo a batalhar contra suas aflições durante todo o processo de cuidados paliativos.
O primeiro passo é sanar o sofrimento físico, como falta de ar e desconfortos em geral. Quando não há mais dores, contudo, surgem os desafios emocionais. A exemplo de auxiliar o paciente a se resolver com sua religiosidade (mesmo quando se trata de um ateísta) e promover as últimas despedidas e desejos. “Há casos em que não tem remédio, mas pelo menos existem maneiras de preparar o paciente para conviver melhor com sua enfermidade”, explica Ana Claudia.
É exemplar o caso da paranaense Rosary Guimarães, de 87 anos (nas galerias de fotos desta reportagem, confira histórias de doentes que passam por cuidados paliativos). Há um ano, ela chegou na clínica de Sainte-Marie, em São Paulo, com a previsão de que só teria mais 90 dias de vida. Com um tumor na região torácica, não conseguia se levantar da cama, andar, nem realizar movimentos mais suaves.
“Não desisti, sabia que não era meu momento e que havia o que fazer”, relatou Rosary. Passado um ano, após a aplicação de remédios, ela já não é tida por médicos como em estado de terminal. Poderia, inclusive, retornar à sua casa. Entretanto, os familiares escolheram deixá-la na clínica, por lá Rosary ter disponível atendimento médico 24 horas, em situações emergenciais.
Rosary Guimarães, 87, está há um ano na clínica Sainte-Marie, em São Paulo. Com um tumor benigno no mediastino, as células podem crescer no espaço entre os pulmões e causar problemas respiratórios. (Bruno Santos/VEJA.com)
3º cuidado: Quem acompanha também precisa de atenção
Outro ponto que Ana Claudia percebeu como crítico é a falta de cautela que os acompanhantes dos pacientes têm com as próprias necessidades. “Quem cuida de um ente querido acaba por sofrer junto, pelo anseio em tomar conta”, afirma a médica. Logo, é preciso dar assistência também aos familiares e amigos próximos.
O cuidado paliativo, portanto, se estende aos que acompanham o doente terminal. E não acabam junto com a morte. É necessário se preparar, também, para um eventual período de luto, por vezes com o acompanhamento de um profissional.
Diz Ana Claudia: “Só podemos olhar e valorizar o outro se fizermos o mesmo por nós. Dedicar a própria vida a alguém não é o que se precisa, pois o cuidador se sobrecarrega, se estressa e acaba por piorar a situação”.
Em A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver, ela recorda de uma de suas pacientes que não seguiu a dica. Tratava-se de uma senhora com demência avançada que acabou por passar mais de vinte anos na cama antes de falecer. No início do processo, porém, a filha da paciente optou por desmarcar um casamento, parar de estudar, abrir mão de tudo, para ficar ao lado da mãe.
Só que esse “ficar ao lado” durou duas décadas e, no fim, a filha passou a reclamar no hospital: “dei a minha vida por minha mãe”. Analisou Ana Claudia, no livro: “a filha aceitou chantagens (emocionais, vindas da mãe) e se arrependeu. Mas o arrependimento chegou tarde demais e virou um lamento. Já não havia retorno.”
Catarina Greco Alves, 64, visita sua mãe, Ernestina Greco, 88, que está há dois meses na clínica Sainte Marie, em São Paulo. “Emocionalmente, cheguei pior do que a minha mãe”, relata filha. Segundo ela, os cuidados paliativos, mais “humanos”, dados por enfermeiros e médicos foram determinantes para tranquilizar a família. (Bruno Santos/VEJA.com)
4º cuidado: Permitir que o paciente sinta a própria morte
Nesse ponto, é uma questão de todos serem honestos durante o processo. A preocupação central é não mentir para o doente sobre sua condição. “Saber a verdade sobre a própria saúde é sempre um direito irrevogável”, pontua Ana Claudia. “Muitos familiares defendem que a ciência de que falta pouco para o fim pode jogar a pessoa em um poço de tristeza. Essa ideia não é correta. O que mata é a doença, não o fato de saber que ela existe”.
Pelo contrário, ao ter noção de sua real condição, o paciente pode agir de acordo. Exemplo: se existe possibilidade de cura, há a chance de optar por se dedicar a tratamentos mais invasivos e doloridos. Agora, caso um novo exame, ou remédio, em nada mude a expectativa, pode-se escolher por não dar continuidade aos esforços para dedicar o pouco tempo que resta a outras prioridades.
Escreveu Ana Claudia, em sua obra: “Quando dou ao paciente a chance de saber sobre a gravidade de sua condição, essa verdade traz a oportunidade de a pessoa aproveitar o tempo que lhe resta de maneira consciente, assumindo o protagonismo de sua história.”
No fim…
… só há vantagens em se preparar para a própria morte (e da de pessoas que amamos). Além dos evidentes benefícios emocionais, há ainda questões mais amplas.
No Brasil, mais de 1 milhão de pessoas morrem anualmente. Destas, 800 000 falecem após períodos em estado terminal, usualmente vítimas de doenças como câncer. Caso os cuidados paliativos tenham início dois dias após o diagnostico do mal, o tratamento costuma custar 24% a menos do que quando não se toma essa medida. Se demorar seis dias, a contenção de gastos já se reduz para a casa dos 15%.
Nos Estados Unidos, 50 bilhões de dólares são gastos anualmente com os últimos meses de vida de pacientes, o que representa 10% dos fundos de planos de saúde. Quando o tratamento paliativo é oferecido, há uma economia de 5 000 a 7 000 dólares anuais por paciente.
Médico especialista no tema, Daniel Neves Fortes, do Hospital Sírio Libanês, diz o seguinte sobre esse viés econômico: “No fim, acaba por ser também uma forma de gerir melhor o dinheiro público destinado à área da saúde. Ainda se desembolsa muito apenas para prolongar o sofrimento de pessoas, quando esse gasto deveria é ser voltado a fazer com que nós sofrêssemos menos quando chega o fim da vida.” Agora, claro, muito antes dessas preocupações é preciso levar em conta que atentar à pessoa, e não tão-somente à doença que ela tem, também é uma forma bem mais empática de lidar com essa inescapável “certeza da vida”.
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