Geólogos descobriram as primeiras evidências capazes de confirmar a existência da Grande Enchente da China, evento que, segundo relatos mitológicos, está nas origens da civilização chinesa. De acordo com os especialistas, algumas pistas revelam que o desastre poderia ter realmente ocorrido há 4.000 anos ao redor do rio Amarelo – data que coincide com a lenda do nascimento da civilização chinesa.
De acordo com os contos tradicionais, uma grande inundação cobriu a região ao longo do rio, mas um homem chamado Yu foi capaz de orquestrar o trabalho de drenagem necessário para orientar as águas de volta para suas margens. Ao restaurar a ordem depois do caos, ele recebeu o mandado divino para estabelecer a dinastia Xia, a primeira na história da China.
Para tentar encontrar vestígios da lenda, Qinglong Wu, professor do departamento de geografia da Nanjing Normal University, na China, Darryl Grander, da Universidade Purdue, nos Estados Unidos e David Cohen, da Universidade Nacional de Taiwan, trabalharam por quase uma década. No estudo, publicado na revista Science, revelam como foi feita a análise detalhada de vestígios geológicos e arqueológicos encontrados na região centro-norte da China, onde está o curso superior do rio.
Grande enchente
Os pesquisadores encontraram indícios de que os moradores da região haviam morrido soterrados dentro de suas habitações durante um grande terremoto. Análises feitas pelo método carbono-14 nos esqueletos de três crianças encontradas no local mostraram elas haviam morrido por volta de 1920 a. C., período que coincide com a grande transição cultural da China e também com a dinastia Xia.
O terremoto que as matou também deveria ter aberto fissuras no solo das habitações. Se houvessem sobrevivido a uma enchente catastrófica, essas rachaduras estariam repletas de sedimentos típicos de tal evento. Ao analisar amostras geológicas do local, os pesquisadores perceberam não apenas a existência dos vestígios sedimentares que indicam a inundação, como, a partir deles, conseguiram também datar com certa precisão o momento em que a enchente ocorreu: menos de um ano após o terremoto.
Segundo os cientistas, o abalo sísmico foi um dos responsáveis pela grande inundação, pois levou a desabamentos e lançou ao rio grandes blocos rochosos. Quando analisadas, essas rochas também exibiam sedimentos característicos da enchente.
Os resultados indicam ainda que esses grandes blocos jogados dentro do rio criaram uma barragem de 200 metros de altura. A grande parede interrompeu a passagem do rio durante meses e, quando a água finalmente conseguiu romper o bloqueio, lançou às vilas enormes fluxos d’água.
Essa teria sido uma das maiores enchentes conhecidas na Terra nos últimos 10.000 anos, afirmou o coautor Darryl Granger. Segundo os cálculos, o nível das águas subiu até 38 metros acima do nível atual, tornando o desastre “aproximadamente equivalente à maior inundação do rio Amazonas já medida”, afirmou a repórteres em uma conferência por telefone. A enchente teria sido “mais de 500 vezes maior do que uma enchente no rio Amarelo causada por uma precipitação atmosférica”, acrescentou o pesquisador.
Origens da civilização chinesa
Segundo os cientistas, a ligação entre o evento catastrófico e a datação dos esqueletos, que coincide com uma grande mudança cultural na região dá a “sugestão tentadora de que a dinastia Xia pode realmente ter existido”, disse Cohen.
Se a relação for comprovada, o início da dinastia Xia pode passar a ser considerado por volta de 1900 a.C., e não 2200 a.C., como se acreditava. A população chinesa, que à época já era grande, poderia ter se mobilizado para cavar canais e restabelecer o curso do rio – o que também coincide com a lenda.
“As grandes inundações ocupam um lugar central em algumas das histórias mais antigas do mundo”, escreveu David Thompson, da Universidade de Washington, em Seattle, em um comentário sobre o estudo na revista Science. “E a enchente do Imperador Yu é hoje considerada outra história dessas, potencialmente enraizada em eventos geológicos.”
O estudo, no entanto, foi visto com cautela pela comunidade científica – ainda precisam ser confirmadas as relações de causa e efeito entre os eventos. “É um estudo revolucionário, no entanto são necessários novos dados para que os achados sejam realmente aceitos na comunidade científica”, afirmou à Science Qingwei Sun, um arqueólogo da Peking University, na China, que não participou do estudo.
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