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Coronavírus: as consequências do apagão estatístico do governo
A informação é uma das armas mais preciosas de um governo no combate a uma pandemia — ajuda a organizar as forças necessárias para vencer o inimigo, como a distribuição de recursos e a definição de prioridades. Nesse aspecto, o Brasil está sem poder de fogo desde o início da crise. Há evidências robustas de uma grande subnotificação devido ao baixo número de exames realizados por aqui (apenas 6 400 a cada 1 milhão de brasileiros foram testados, índice dez vezes menor que o dos Estados Unidos). De acordo com os especialistas, há duas vezes mais casos que os anunciados oficialmente, no mínimo. Na direção contrária, o presidente e sua tropa lançaram a teoria conspiratória de que estados inflam de propósito as estatísticas para desestabilizar a gestão de Jair Bolsonaro, uma sandice completa. A confusão aumentou ainda mais nos últimos dias, com o movimento do Ministério da Saúde no sentido de mudar a metodologia de contagem de vítimas da doença. A iniciativa provocou uma enorme e desproporcional balbúrdia, com acusações de tentativa de censura e notas de repúdio no exterior. O imbróglio chegou ao STF, que obrigou o governo federal a recuar da decisão. Tamanho rebuliço não mudou em nada o fato que é realmente incômodo desde a descoberta do primeiro paciente de coronavírus no país: a única certeza é que chegaremos ao final da crise sanitária (tomara que o mais breve possível) sem saber nunca o tamanho exato do estrago.
O tumulto recente teve origem na pasta comandada pelo general Eduardo Pazuello, nomeado comandante interino da área depois das demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich em menos de um mês. No espaço de quatro dias, com o país superando a marca de 1 000 mortes a cada 24 horas, o Ministério da Saúde mudou de 19 para 22 horas o horário de atualização dos dados da Covid-19 no país (“Acabou matéria no Jornal Nacional”, comemorou Bolsonaro), divulgou números conflitantes sobre mortes e tirou do ar a plataforma oficial de contagem da doença. Em meio a tudo isso, anunciou que passaria a divulgar apenas os números de óbitos do dia, e não mais a soma dessas mortes com as ocorridas anteriormente e confirmadas nas últimas 24 horas, como era feito, seguindo o mesmo sistema adotado por quase todos os países do mundo. O modelo permite um acompanhamento mais completo do quadro de evolução da doença. O coro de críticas à tentativa de mudança contou com as vozes de Mandetta e Teich. O primeiro declarou que o movimento era fruto de uma “lealdade militar burra”, em um alfinetada a Pazuello. Já o segundo afirmou temer uma “guerra de números” no país.
A suspeita de tentativa de maquiagem de dados foi imediata, levando-se em conta as sucessivas declarações do presidente minimizando a gravidade da pandemia e as críticas dele e de membros do governo à cobertura da crise pela imprensa (“Só mostra caixão”, segundo o ministro-chefe da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos). Em abril, Bolsonaro já pressionava Mandetta a mudar o formato dos anúncios diários da doença, de modo a enfatizar as vidas salvas, e não as mortes ocorridas. Foi solenemente ignorado pelo ex-ministro e pelos técnicos da pasta. Se não bastasse, em meio à confusão da troca de metodologia de contagem do coronavírus, o empresário Carlos Wizard, cotado a assumir uma das secretarias do Ministério da Saúde, disse em uma entrevista que os números da Covid-19 no Brasil seriam recalculados por suspeita de superfaturamento. As reações negativas à declaração e o início de um movimento de boicote às empresas do grupo Wizard nas redes sociais fizeram com que ele desistisse de ingressar no governo. O episódio, no entanto, alimentou a tese de que haveria uma disposição para tentar esconder mortos debaixo do tapete.
Na verdade, o objetivo era outro. Ao suprimir da contagem diária os óbitos notificados, aqueles ocorridos em datas anteriores e confirmados nas últimas 24 horas, como desejava o Ministério da Saúde, o Palácio do Planalto poderia mostrar uma contabilidade menos trágica — só que totalmente descolada da realidade. “É um ilusionismo para convencer as pessoas de que a pandemia não é grave”, diz o médico Gastão Wagner, professor de saúde pública da Unicamp. Segundo ele, a mudança na metodologia implica em registros até 30% menores. O único país que adota esse sistema está longe de ser uma referência de honestidade na divulgação de dados. Trata-se da Rússia, que ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de casos registrados, atrás apenas dos Estados Unidos e do Brasil, mas possui uma das menores taxas de mortalidade do mundo, 1,3%. A pressão internacional fez o governo de Vladimir Putin recontar recentemente os mortos por coronavírus, o que dobrou o número de óbitos registrados na capital, Moscou, 1 561, e não 639, como antes anunciado.
No caso brasileiro, uma possível tentativa de maquiar dados com a troca da metodologia teria efeito zero. O Ministério da Saúde somente consolida as informações fornecidas pelas secretarias de saúde estaduais. Ou seja, qualquer manipulação seria facilmente detectada. Além disso, na crise dos últimos dias, o Conass, conselho nacional que reúne essas secretarias, criou um painel que passou a divulgar as informações diárias da Covid-19 com o objetivo de garantir que o país continuasse a ter acesso aos dados da doença como eles sempre foram anunciados, somando os óbitos do dia e os de dias anteriores confirmados nas últimas 24 horas. Assim, o governo federal pode até mudar a metodologia para mostrar uma face mais amena do problema, porém teria sempre o inconveniente de uma comparação diária com o placar do Conass. Em sessão na Câmara dos Deputados, na terça-feira 9, o interino Pazuello reconheceu que os dados sobre a Covid-19 são “inescondíveis”.
Não faz sentido criar tamanho tumulto sabendo-se que é difícil dourar a realidade, mas brigar com os fatos tem sido, infelizmente, uma prática recorrente no governo de Bolsonaro. Tudo começou logo no primeiro mês de mandato, em janeiro de 2019, quando o vice-presidente Hamilton Mourão aproveitou um período no exercício do Executivo para baixar um decreto que restringia a Lei de Acesso à Informação. A medida foi derrubada dias depois no Congresso. Em julho do ano passado, acuado pelas queimadas na Amazônia, Bolsonaro disse que os dados do Inpe que mostravam desmatamento recorde na região eram mentirosos. A investida custou o cargo do diretor do instituto, Ricardo Galvão, um dos cientistas mais renomados do país. “Governos com atitudes ditatoriais sempre procuram desqualificar dados que não respaldam sua estratégia”, afirma Galvão. No campo econômico, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados teve a metodologia alterada e omitiu a publicação de informações por cinco meses. Esse histórico afeta a imagem do Brasil e se torna mais um impeditivo para a entrada de capital no país. “Os investidores precisam ter confiança no Estado. Não é admissível que o governo tenha poderes ilimitados nem que seja obscuro”, afirma Paulo Furquim, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper.
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