Conecte Conosco

Centro-Oeste

Denúncias de bullying crescem 243% nas escolas do DF

Publicado

em

Debate sobre o tema se intensificou com a repercussão da minissérie Adolescência. Ao Correio, especialistas explicam a complexidade da questão e destacam a importância de dados para a construção de políticas públicas

Depressão, ansiedade, dismorfia corporal e até ideação suicida. Essas são uma das consequências do bullying — termo dado à violência física ou psicológica, intencional e repetitiva, sem motivação evidente.

Agora, o bullying volta a ser objeto de reflexão e de debate com mais intensidade não devido a um caso real, mas a partir de uma obra de ficção. A minissérie Adolescência, que estreou na Netflix em 13 de março. Em quatro episódios, de forma visceral, a obra trata também de questões como misoginia, machismo, o lado perverso do uso das redes sociais, a convivência escolar e a relação entre pais e filhos.

No Distrito Federal, de janeiro a dezembro do ano passado, a Polícia Civil (PCDF) registrou 120 denúncias relacionadas ao crime de bullying em escolas, número 243% maior que o do mesmo período de 2023, quando houve 35 denúncias. Apesar de o assunto ser repercutido no Brasil desde a década de 1990, a violência virou crime somente no início do ano passado, com a sanção da Lei 14.811/2024.

Ao Correio, a secretária de Educação, Hélvia Paranaguá, afirmou que a rede pública de ensino conta com comissões dedicadas a promover ambientes seguros e acolhedores. A pasta tem uma assessoria, dentro da Subsecretaria de Educação Básica, que atua para incluir a cultura de paz nas escolas.

Sobre os números, Hélvia acredita que o aumento das denúncias se deve a um maior conhecimento sobre o assunto, a partir do reforço das campanhas de conscientização e da ampliação da divulgação dos canais de denúncia. “As escolas estão mais preparadas para identificar e acolher os casos. E a comunidade escolar está mais informada sobre como agir”, analisou.

A chefe do Grupo de Apoio à Segurança Escolar (Gase) do Ministério Público do DF e Territórios
(MPDFT) e mediadora de conflitos escolares, Caroline Resende, avaliou que a falta de dados é um gargalo para a criação de políticas públicas. “Isso atrapalha porque o bullying é um fenômeno multifatorial, com questões sociais, e a gente precisa entender o contexto das diferentes realidades, pode ser uma na escola do Plano Piloto, e outra em Samambaia. É preciso entender o contexto social e cultural de cada comunidade para trabalhar valores”, argumentou.

Para ela, as intervenções de prevenção e de enfrentamento não podem ser realizadas de maneira intuitiva nas escolas, o que, segundo ela, tem sido feito nas redes pública e privada. “A implementação das medidas de prevenção devem ser realizadas de forma técnica, periódica e coordenada, por toda equipe de profissionais de educação. Quanto ao enfrentamento, as ações devem ser imediatas, a fim de interromper a violência e evitar a reincidência da prática. Por isso, a importância da capacitação de todos os profissionais de educação, possibilitando o desenvolvimento de habilidades e competências para implementar a cultura da paz”, defendeu Caroline.

A professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Gabriela Mietto analisou o deficit de dados. Ela explicou que, desde que a nomenclatura passou a ser utilizada, a forma com que a violência é executada mudou. A sociedade, no entanto, baseada nos conceitos iniciais, apresenta dificuldades, certas vezes, para identificar o bullying. “Essa questão passou a ser taxada como crime há pouco, então, talvez, a partir desse marco legal, agora, a gente vá, realmente, começar a ter os números”, observou.

Trauma

Ainda que ocorra comumente na vida escolar, o bullying deixa rastros na vida adulta. A universitária Carla (nome fictício), 20 anos, carrega traumas da violência sofrida na infância. No caso dela, a prática era cometida por sua, até então, melhor amiga. “Demorei para reconhecer que era bullying, e não apenas brincadeiras.”

Carla era uma criança acima do peso e sofria com comentários maldosos por parte dessa pessoa. “Sempre lembro da vez em que tínhamos uns 8 anos e fomos tirar uma foto na piscina. Ela disse: ‘encolhe a barriga’. Sempre ‘vazava’ minhas informações íntimas. Como crianças, dormíamos e tomávamos banho juntas. Em uma situação, ela zombou das minhas partes íntimas na frente da turma, inclusive, do professor. Fiquei constrangida e desacreditada”, relembrou.

A situação gerou gatilhos. “Tenho quase 21 anos e o bullying ainda faz efeito. Desfiz a amizade, mas ela faz parte do círculo de alguns amigos, não é incomum encontrá-la. Em 2023, estávamos em uma mesma festa e tive crise de ansiedade por pensar que ela poderia me constranger novamente”, desabafou Carla, que desenvolveu problemas de autoimagem, principalmente em relação ao peso.

Claudia Melo, psicóloga especialista em terapia cognitivo-comportamental com prática em clínica supervisionada, ressaltou que o bullying vai além de conflitos comuns, uma vez que é compreendido como uma forma de violência repetitiva, em que há uma relação assimétrica de poder e sistemática de agressão. “É um fenômeno de grande gravidade, pois pode deixar marcas profundas no psiquismo do sujeito. O eu (ego) é formado na relação com o outro, especialmente na infância e adolescência. A constância, repetição de experiências de violência, humilhação e exclusão pode fragilizar essa construção, levando a sintomas, como baixa autoestima, angústia, ansiedade e traumas. Em casos extremos, pode contribuir para quadros depressivos e ideação suicida”, alertou.

Júlia (nome fictício) cresceu sendo apelidada. Sentia-se excluída e inferior aos outros alunos. “Na universidade, enfrentei um novo desafio: descobri que tenho dislexia. Sofri com piadas e afastamento dos colegas. Passei noites em claro, chorando, com medo de ser julgada. O bullying não é uma brincadeira, fere profundamente e deixa cicatrizes invisíveis”, lamentou.

Os relatos estão em sintonia com a análise de Fábio Aurélio Leite, psiquiatra do Hospital Santa Lúcia Norte e especialista em bullying. A violência pode ocorrer em diferentes formatos. “Pode haver agressão física, mas também humilhação, uma forma de desqualificar o outro, com apelidos, críticas ou xingamentos, que podem ser relacionados a qualidades físicas, como quando a pessoa tem excesso de peso, é ‘muito’ magro, baixo ou alto, usa óculos ou apresenta deformidade física, ou até mesmo racial, que hoje é um crime, mas também é uma forma de bullying”, disse.

As consequências podem variar conforme a idade da vítima, conforme elenca o especialista. Na criança, pode haver o início de depressão, ansiedade ou insônia. No adolescente, além dos citados, pode ocorrer bulimia, anorexia, transtorno dismórfico corporal, ideação suicida, síndrome do pânico, problemas de autoestima e de relacionamento. Nos adultos, homens podem apresentar comportamento agressivo e mulheres doenças psicossomáticas.”

Impacto na sala de aula

A violência corrompe a vítima, o agressor e o andamento da aula. Sueli de Oliveira, coordenadora pedagógica da Rede Objetivo, apontou que o fenômeno afeta o processo de ensino e aprendizagem, pois os envolvidos mudam o comportamento e têm as áreas motoras e cognitivas abaladas. “Um dos papéis da escola para prevenir e combater o bullying é montar estratégias junto ao serviço de orientação educacional, promovendo momentos de conversas e escutas periódicas, para estimular o respeito, o cuidado e também o ato de informar casos de agressões entre os alunos”, apontou.

A chefe da Assessoria Especial de Cultura de Paz da SEEDF, Ana Beatriz Goldstein, declarou que a pasta trabalha em projetos dentro das escolas com o objetivo de fomentar a comunicação não violenta, a empatia e o respeito. “Nós temos feito formações com os profissionais, para que aprendam como observar e lidar com a questão. Além disso, nós vamos fazer o lançamento do Caderno de Práticas Exitosas em Educação para a Paz, que abrigará os projetos que as escolas desenvolvem no âmbito da temática de paz”, assinalou.

Tipos de bullying

Verbal: insultos, apelidos, ofensas e xingamentos;

Psicológico: intimidações, difamações, ameaças e fofocas;

Físico: tapas, chutes, empurrões e beliscões;

Virtuais ou cyberbullying: realizado por meio de ferramentas tecnológicas.

Fonte — Cartilha educativa: Bullying no ambiente escolar (UFPB)

O que diz a lei?

Bullying — Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais. Pena: multa, se a conduta não constituir crime mais grave;

Cyberbullying — Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real. Pena: reclusão de dois anos a quatro anos e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Fonte: Lei nº 14.811/2024

Artigo

Mudarmos a nós mesmos é a chave?

Francisco Rengifo Herrera, psicólogo, mestre em processos cognitivos e aprendizagem e doutor em processos de desenvolvimento humano, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB)

Algo seguro é algo estável, livre de perigo e inalterável. No entanto, ao mesmo tempo, está relacionado com o que é rígido, fixo e inflexível. Muitas pessoas hoje vivem em sobressalto e insegurança diante de um mundo caótico. Porém, paradoxalmente, se relacionam usando critérios rígidos e imutáveis. Essa enorme tensão tem os levado a pensar que tudo aquilo que se distancie do seu modo de pensar deve ser taxado como perigoso, incontrolável e suspeito.

A escola reflete tudo o que nossa sociedade enfrenta. Cada vez mais, é frequente encontrarmos pais que impõem um controle totalitário na vida dos filhos. Para muitos deles, definir arbitrariamente o que é bom ou ruim; dizer para os professores o que pode ou não ensinar; selecionar os tipos de amigos que a criança deve ter ou censurar crenças e valores considerados uma “ameaça” para o futuro do filho, são atitudes cada vez mais comuns. Há um aumento do isolamento nas relações com os outros, que promovem a emergência de argumentos falsos, como a ideia de que o homeschooling salvará as crianças da “contaminação” de ideologias, da violência, de escolas e professores “maus”.

O psicólogo Jaan Valsiner explica que os seres humanos buscam estabelecer controle sobre os outros e impor-se (por meio de ações, valores e ideologias), especialmente a partir de se basear em seus preconceitos e estereótipos. Elementos que são constitutivos do que se expressa em forma de bullying na escola.

Ter relações simétricas é uma conquista difícil para nós, seres humanos. São processos que precisamos esculpir, conquistar e que parecem ser a única alternativa para nos afastar das nossas pretensões mesquinhas. Somente por meio da vivência da empatia podemos abrir caminho para permitir vínculos com os demais. Como fazer isso se as crianças vivenciam o contrário dentro de casa?

A segurança na escola não se obtém vigiando e punindo crianças ou jovens que fazem bullying. A melhor forma de criarmos ambientes escolares seguros exige mudarmos a nós mesmos. Pais que agridem sua família, humilham os filhos, terceirizam a criação para viver suas próprias vidas; adultos que xingam e desrespeitam quem pensa diferente na frente dos filhos ou que usam celulares e tablets como forma de deixar a criança “quieta” contribuem para a emergência de agressores e agredidos.

Como pretendemos ter escolas sem bullying se não temos a mínima condição de nos transformar (esculpir a nós mesmos) e de nos colocar no lugar do outro? Se não podemos mostrar para os nossos filhos o que é ser empático? Talvez seja melhor ser sinceros conosco e olharmos no espelho e pensar que o bullying entra na vida dos nossos filhos por meio do nosso comportamento, especialmente quando ninguém está vendo.

Correio Braziliense

Clique aqui para comentar

Você precisa estar logado para postar um comentário Login

Deixe um Comentário

Copyright © 2024 - Todos os Direitos Reservados