Centro-Oeste
DF teve uma denúncia por dia contra clínicas de estética em março

Foram registradas 32 reclamações contra estabelecimentos da capital em março de 2025. No ano passado, 13 foram interditados, após 83 denúncias. O principal risco são os tratamentos feitos por profissionais não autorizados e em locais insalubres
Por Correio Braziliense
O Brasil é o segundo país que mais realiza procedimentos estéticos, atrás apenas dos Estados Unidos, segundo a Pesquisa Global Anual sobre procedimentos estéticos e cosméticos, realizada pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps). O leque de serviços, aparentemente benéficos, esconde os riscos de tratamentos feitos por profissionais não autorizados e em locais insalubres. No Distrito Federal, entre janeiro de 2024 e março deste ano, a Vigilância Sanitária interditou 14 clínicas de estética. O número de denúncias de março deste ano assusta: foram 32 reclamações.
O debate sobre o tema ressurgiu na capital depois que duas mulheres foram acometidas pela Mycobacterium abscessus, microbactéria causadora de infecções crônicas na pele e em tecidos moles que, em alguns casos, podem atingir os pulmões. As duas pacientes tiveram infecções na maçã do rosto e alegaram ter contraído a bactéria após passarem por procedimentos estéticos em clínicas distintas.
Em junho do ano passado, a influencer e modelo Aline Ferreira, 33 anos, moradora do Gama, morreu após passar por um procedimento de preenchimento no glúteo com a substância chamada polimetilmetacrilato (PMMA), contraindicado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a aplicação nas nádegas. A biomédica responsável pelo serviço, Grazielly da Silva Barbosa, foi presa e indiciada. A Justiça definiu medidas cautelares para a mulher, como o uso da tornozeleira eletrônica. Em fevereiro, ela se tornou ré por homicídio com dolo eventual e aguarda o julgamento em liberdade.
Por meio da Secretaria de Saúde, a reportagem obteve dados sobre interdições, reclamações e fiscalizações em clínicas estéticas da capital. Das 14 interdições, 13 ocorreram no ano passado, em Águas Claras, Brasília, Ceilândia, Gama e Planaltina. Neste ano, a Vigilância Sanitária suspendeu as atividades de outra clínica em Taguatinga. Nos dois primeiros meses deste ano, 36 clínicas de estética foram vistoriadas, sendo 31 dessas visitas motivadas por denúncias recebidas pela Ouvidoria do Governo do Distrito Federal (GDF). Em 2024, foram vistoriadas 377 clínicas, das quais 83 foram alvos de reclamações.
De acordo com a pasta, as principais causas das proibições de funcionamento foram a ausência de local adequado para a esterilização de instrumentais e a realização de procedimentos estéticos invasivos sem o devido licenciamento sanitário. “Apesar disso, as 14 clínicas interditadas ofereciam uma variedade de serviços. É importante destacar que não é competência da Secretaria mapear todos os serviços prestados por esses estabelecimentos. A Vigilância Sanitária atuou com base em denúncias, inspecionando os locais e interditando aqueles que apresentaram irregularidades”, completa a nota.
A Secretaria de Saúde orienta o público a verificar as condições de funcionamento do estabelecimento, se o local tem ou não alvará e se o profissional tem credencial para atuar no ramo. Na capital, o serviço de fiscalização pode ser requisitado por meio dos canais de atendimento da Ouvidoria do GDF: via internet, pelo telefone 162, ou presencialmente, em qualquer unidade do órgão. Quanto aos produtos usados nos procedimentos, é possível verificar a procedência no site da Anvisa.
“Bomba-relógio”
Marina Figueiredo, 43 anos, viveu momentos de angústia e terror após se submeter a um procedimento estético que, inicialmente, foi vendido como uma rinomodelação segura, com ácido hialurônico. “Fui a uma clínica no Sudoeste. O procedimento seria simples, minimamente invasivo, apenas com preenchedores. Mas, para minha surpresa, o que fizeram foi uma rinoplastia, com cortes, incisões e modificações estruturais — tudo isso, com anestesia local”, relata.
Segundo Marina, o profissional responsável era um dentista. “Eles passaram um fio e amarraram a ponta do meu nariz para afiná-lo. Eu saí do consultório completamente assustada. Minha expressão facial tinha mudado drasticamente.”
A esperança era de que o inchaço passasse e o resultado melhorasse com o tempo. Mas não foi o que aconteceu. “Uma narina ficou para cima e a outra, para baixo. Eu me senti deformada. Reclamei com o dentista, que refez o procedimento — e conseguiu piorar ainda mais. Todos os dias, eu me olhava no espelho tentando me convencer de que, com o tempo, o nariz ficaria simétrico. Mas só piorava.”
Marina enfrentou complicações graves após o procedimento malfeito. “Fiquei com um fio extravasado, que saía pela pele, inflamava e criava pus. Eu sentia que meu nariz poderia necrosar a qualquer momento.” Após o trauma, ela buscou ajuda médica especializada. “Fui a vários profissionais e todos foram unânimes: eu havia sido submetida a uma rinoplastia, dentro de um consultório, de forma totalmente inadequada. O que me restava era fazer uma rinoplastia secundária, muito mais complexa, para tentar reparar os danos.”
O caso, no entanto, era delicado demais. “Passei por vários cirurgiões e ninguém queria assumir. Diziam que era uma bomba-relógio. Até que um médico aceitou o desafio. Reconstruiu meu nariz em uma cirurgia que durou sete horas, usando cartilagem da costela”, detalha.
“Virou pesadelo”
Depois de perder peso, Laryssa Elisa, 33, olhou-se no espelho e sentiu o desejo de completar sua transformação com a colocação de próteses de silicone. Durante a busca por um profissional, encontrou um cirurgião plástico recomendado por duas amigas que haviam feito o mesmo procedimento com ele. “Eu tinha excesso de pele por causa do emagrecimento e, então, fechei com o médico uma mastopexia com próteses — ou seja, retirada de pele com a inserção do silicone”, conta.
O que parecia a realização de um sonho e a conquista da autoestima acabou se transformando em um pesadelo. “Com três dias de cirurgia, comecei a sentir uma pressão muito forte no peito. Havia coágulos e hematomas no seio. Dias depois, começou a vazar sangue pelos pontos. Eu questionei o médico, mandava fotos e mensagens, mas ele sempre dizia que era normal e que o sangue preso iria drenar sozinho com massagens no banho”, relata.
O sangramento diminuiu, mas Laryssa não imaginava que, dentro do peito, uma grave infecção já estava em curso. “No lugar do sangue, começou a sair seroma (líquido constituído de plasma e linfa) e isso se manteve por muitos dias. Sempre que eu falava com o médico, ele insistia que era normal. Até que, no canto esquerdo da mama, surgiu uma bolinha que começou a expelir pus — e, ainda assim, ele não tomou nenhuma providência”, relembra.
O quadro se agravou. Em um momento crítico, a bolinha se rompeu, revelando tecido escurecido por dentro — sinal de necrose. “Foi só aí que ele disse que eu precisava retirar a prótese com urgência. Fizemos a retirada, mas, mesmo assim, dias depois, acordei com o seio muito quente. Precisei drenar mais 20 ml de pus e, por fim, passei por uma terceira cirurgia”, conta.
Laryssa conta que o médico prometeu pagar outra pótese para ela, mas não cumpriu. “Entrei na Justiça e acabei perdendo a causa”, lamenta.
Perigos
A médica dermatologista Tatiana Sabaneeff, do Hospital Anchieta, explicou ao Correio sobre riscos e sinais de que algo deu errado em um procedimento estético. Tratamentos como peeling, microagulhamento ou aplicação de enzimas realizados em locais sem estrutura adequada podem trazer sérias consequências ao paciente. Segundo a especialista, mesmo procedimentos considerados minimamente invasivo exigem um ambiente com condições apropriadas de higiene, biossegurança e estrutura técnica para lidar com possíveis intercorrências.
“Procedimentos que rompem a barreira de proteção natural da pele criam uma porta de entrada para microrganismos. Quando não são seguidos os cuidados corretos de assepsia e esterilização, o risco de infecções locais e até sistêmicas aumenta. Além disso, o uso inadequado de antibióticos para tratar essas complicações pode favorecer o surgimento de bactérias resistentes, o que torna o tratamento mais difícil”, alerta a dermatologista.
Ela reforça que é fundamental identificar se o local é considerado seguro e adequado para o procedimento. Além de a clínica ter que seguir as normas da Vigilância Sanitária, com estrutura adequada, ambiente limpo, materiais estéreis ou descartáveis e profissionais devidamente registrados nos seus conselhos de classe, a médica ressalta que os produtos utilizados devem ter registro na Anvisa, estarem dentro do prazo de validade e serem armazenados conforme as recomendações do fabricante.
“O paciente pode — e deve — solicitar para ver a embalagem do produto antes da aplicação. Isso ajuda a garantir a procedência e a qualidade do que está sendo utilizado, evitando o uso de substâncias clandestinas, que infelizmente circulam no mercado e representam riscos reais à saúde”, conclui.
Direitos
A reportagem ouviu advogados especialistas em direito do consumidor para comentar sobre responsabilidades legais, processos e possíveis reparações. De acordo com Luís Guilherme Lima, uma clínica de estética que faz procedimentos sem habilitação ou estrutura pode ter que arcar com implicações legais graves, como sanções nas esferas civil, criminal, administrativa e ética, além da atuação direta pelos conselhos de classe e órgãos de fiscalização. “É importante frisar que cada conselho de classe regulamenta uma profissão e, dependendo da profissão exercida, é vedado o exercício e a prática de atos privativos de outros profissionais, especialmente em procedimentos invasivos.”
O especialista esclarece sobre o momento de entrar na Justiça contra um profissional ou estabelecimento por erro ou complicação do tratamento. A dica é se resguardar, primeiro, com um completo arcabouço documental, elaborado por um advogado especialista em direito de saúde, sempre prezando pela transparência com o paciente e a transmissão de informações claras e indispensáveis para a realização do procedimento.
Viviane Guimarães, advogada especialista em direito da saúde, complementa sobre as implicações. Na esfera cível, segundo ela, a clínica pode ser obrigada a indenizar o paciente por danos materiais e morais decorrentes de resultados insatisfatórios, complicações ou danos à saúde causados pela falta de habilitação ou estrutura inadequada.
Na esfera penal, os profissionais envolvidos no procedimento podem ser penalizada por exercício ilegal da medicina ou odontologia, se não forem habilitados a realizar procedimentos privativos de médicos ou dentistas. Eles podem incorrer nos crimes de lesão corporal, homicídio culposo ou doloso, e até crimes contra a saúde pública. Há, ainda, punições no âmbito administrativo, como autuações e multas dos órgãos de vigilância sanitária, além da cassação de licenças e alvarás.
Segundo Daniela Fernanda Auricchio, advogada especialista em direito da saúde, o Conselho Regional de Medicina (CRM) busca manter alguns atos como privativos de médicos, sobretudo os invasivos e os que possuem necessidade de acompanhamento global de intercorrências, como alguns tipos de peeling químico. “Nesse sentido, a realização de cirurgias plásticas faciais, sedação profunda e anestesia geral são atos exclusivos de médicos, conforme previsto na Lei 12.842/2013. Porém, temos hoje uma gama de procedimentos tão invasivos quanto cirurgias, de natureza estética, que podem ser realizados por fisioterapeutas, biomédicos-estetas, dentistas e farmacêuticos, sendo que essas aplicações são regulamentadas pelos próprios órgãos profissionais”.
Três perguntas para
Daniela Fernanda Auricchio, advogada especialista em direito da saúde
Procedimentos como aplicação de enzimas ou preenchedores podem ser realizados por profissionais não médicos? O que diz a legislação?
Essa é a discussão atual, porque o CRM busca manter alguns atos como privativos de médicos, sobretudo os invasivos e os que possuem necessidade de acompanhamento global de intercorrências, como alguns tipos de peeling químico. Nesse sentido, a realização de cirurgias plásticas faciais, sedação profunda e anestesia geral são atos exclusivos de médicos, conforme previsto na Lei 12.842/2013. Porém, temos hoje uma gama de procedimentos tão invasivos quanto cirurgias, de natureza estética, que podem ser realizados por fisioterapeutas, biomédicos-estetas, dentistas e farmacêuticos, sendo que essas aplicações são regulamentadas pelos próprios órgãos profissionais, a exemplo do COREN, do COFFITO e do CFO.
O que caracteriza erro estético e quais os caminhos legais para a vítima buscar reparação?
Antigamente, as decisões judiciais pautavam o erro estético somente quando provado o erro procedimental do profissional envolvido, ou seja, a existência de imperícia ou negligência. Recentemente (dezembro/2024), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu, em um caso de cirurgia plástica, que também é indenizável o procedimento que, embora tenha seguido razoáveis parâmetros técnicos, cause ao paciente ou ao consumidor uma aparência dissociada do senso comum de beleza. Essa decisão, embora aplicada para um caso de cirurgia plástica, amolda-se também aos casos de procedimentos estéticos, sobretudo os invasivos. O caminho legal é procurar um profissional especializado na área de direito da saúde, que irá orientar sobre necessidade de perícias e documentos aptos à discussão judicial dos eventuais erros.
Como o consumidor pode se proteger juridicamente antes de realizar um procedimento estético?
Cabe ao consumidor algumas providências importantes, como verificar se o profissional tem registro que o habilite àquela atividade, sobretudo as invasivas; se o procedimento pode ser realizado em clínicas ou se demanda internação hospitalar; se o profissional possui reclamações ou processos judiciais que discutam inconformidades em procedimentos anteriores e, por fim, o registro fotográfico das condições do consumidor antes e após o procedimento, além da guarda de todas as trocas de informações, sejam por aplicativos de conversa, sejam por e-mails ou contratos de prestação de serviços.

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