Destaque
Equiparar facções ao terrorismo pode levar à intervenção dos EUA no Brasil
A proposta que visa equiparar as facções criminosas ao terrorismo pode expor o Brasil à estratégia de intervenção dos Estados Unidos (EUA) na América Latina, alertam especialistas em relações internacionais, terrorismo e segurança pública.
O Projeto de Lei (PL) 1.283/2025, que busca classificar as facções como terrorismo, poderá ser votado nesta terça-feira (4) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. O assunto ganhou destaque após a grande operação no Rio de Janeiro na semana passada.
Os estudiosos destacam que o crime organizado, voltado ao lucro, como as organizações que movimentam bilhões com o tráfico de drogas, possui natureza distinta do terrorismo, que tem sempre um objetivo político por trás.
O jurista e professor de direito Walter Maierovitch ressaltou que são fenômenos diferentes e que é necessário diferenciar o método terrorista do terrorismo.
“As pessoas não técnicas confundem terrorismo com método terrorista. Por exemplo, um vizinho, após uma desavença, joga uma bomba na casa do litigante. Isso é método terrorista, não terrorismo. No direito internacional, essa distinção é feita e existe a Convenção das Nações Unidas que contempla o crime organizado”, afirmou à reportagem.
A coordenadora do núcleo de estudos de terrorismo e crime transnacional da PUC Minas, Rashmi Singh, explicou que o aumento do número de grupos ou indivíduos designados como terroristas pelos EUA tem legitimado ações políticas e militares norte-americanas no mundo.
“Isso resultou não apenas na invasão ilegal do Iraque em 2003, que levou ao surgimento da Al-Qaeda no Iraque e do que ficou conhecido como Estado Islâmico, mas também em centros de detenção secretos e prisões sem julgamento, muitas vezes sem provas, como em Guantánamo”, disse a especialista.
Singh explicou que essas ações são ilegais segundo o direito internacional humanitário, mas vêm sendo progressivamente normalizadas nos últimos 25 anos.
“Essa normalização é evidente pelo fato de o genocídio em curso em Gaza, desde 2023, ser justificado com a linguagem do contraterrorismo e do combate a um grupo terrorista – neste caso, o Hamas”, complementou.
Para a professora da PUC Minas, a discussão desse tema no Brasil revela a influência dos EUA na região, já que o país estaria internalizando a política atual do presidente Donald Trump, usada para justificar ações militares no Caribe.
“A maioria dos países e instituições internacionais evitam rotular suas próprias organizações criminosas locais como terroristas, para evitar pressões e possíveis intervenções dos EUA, além dos problemas que essa classificação traria”, completou.
Contexto geopolítico internacional
O governo de Donald Trump tem direcionado sua política externa para a América Latina nos últimos meses, justificando a atuação militar com o combate ao “narcoterrorismo”.
Governos aliados a Trump, como os do Peru, Equador e Argentina, têm autorizado a presença de bases e forças especiais dos EUA em seus territórios, além do posicionamento naval na frente da Venezuela, alegando enfrentar o tráfico de drogas.
No mesmo dia da operação no Rio de Janeiro, o governo de Javier Milei na Argentina, aliado importante de Trump, declarou que classificaria as facções brasileiras como terroristas.
O especialista Alberto Kopittke alerta para a necessidade do Brasil bloquear esse movimento geopolítico que utiliza o problema para interesses externos.
O governo tem apostado na PEC da Segurança Pública e no PL Antifacção, para endurecer penas de organizações criminosas e aumentar a integração das forças de segurança.
Rashmi Singh lembra que classificar narcotraficantes como terroristas deu liberdade ao presidente Trump para ações militares no continente, inclusive ataques com mísseis no Caribe.
Recentemente, o senador Flávio Bolsonaro comentou uma postagem do secretário da Guerra dos EUA, Pete Hegseth, pedindo ajuda militar dos EUA ao Brasil contra grupos criminosos internos.
Seu irmão, o deputado Eduardo Bolsonaro, foi denunciado pela Procuradoria Geral da República por tentar intimidar o Supremo Tribunal Federal (STF) ao promover sanções contra ministros e tarificação econômica contra o país, no contexto do julgamento do pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos por tentativa de golpe de Estado entre outros crimes.
Diferenças entre terrorismo e facções
Rashmi Singh ressaltou que facções criminosas não devem ser equiparadas ao terrorismo, pois os crimes exigem respostas específicas.
“Criminosos buscam lucro; terroristas, objetivos políticos, como mudanças de regime. Terroristas podem usar o crime para financiar seus fins, mas seu objetivo final é político.”
Ela destacou que remover líderes terroristas pode enfraquecer o grupo, enquanto remover chefes de facções pode aumentar a violência pela disputa de mercado e rotas de tráfico.
Há casos em que crime e terrorismo se cruzam, mas são fenômenos distintos.
Atuação dos EUA na América Latina
No primeiro dia do mandato, Donald Trump assinou a Ordem Executiva 14157, classificando cartéis de drogas como organizações terroristas globais, possibilitando atuação militar direta contra eles.
Em fevereiro, os EUA designaram oito organizações narcotraficantes como terroristas na América Central, México e Venezuela.
Em maio, a comitiva dos EUA pediu ao Brasil que classificasse as facções nacionais, como o PCC e o Comando Vermelho, como terroristas.
No mesmo mês, a Câmara aprovou a urgência do PL 1.283/2025 que equipara facções ao terrorismo.
O governo brasileiro rejeita essa equiparação, defendendo que as ações das organizações criminosas não configuram terrorismo, segundo o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.
“Terrorismo sempre tem caráter ideológico e político, enquanto as facções cometem crimes previstos no Código Penal.”
Essa declaração foi feita após reunião do ministro com o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, que classifica facções como “narcoterroristas”.
Contexto no Rio de Janeiro
Após a operação que resultou em 121 mortes, veículos como CNN Brasil e O Globo noticiaram que o governo do Rio teria enviado relatório ao governo Trump detalhando a atuação das facções como ato terrorista.
Questionada, a assessoria do governador não confirmou nem negou a informação. Relações com governos estrangeiros são competência exclusiva da União, conforme a Constituição.

Você precisa estar logado para postar um comentário Login