Tem ganhado força na comunidade científica a hipótese de que a progressão do câncer é um processo que envolve, entre outros fatores, a aquisição de características semelhantes às de células-tronco por parte das células tumorais.
Segundo essa teoria, quanto mais a doença avança, menos as células malignas lembram o tecido do qual se originaram, adquirindo um fenótipo indiferenciado que estaria associado a maior agressividade e capacidade de resistir ao tratamento.
Em um estudo divulgado na revista Cell nesta quinta-feira (05/04), pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e colaboradores em outros países descreveram um método capaz de medir de forma objetiva o grau de similaridade de amostras tumorais com células-tronco pluripotentes (com capacidade para se diferenciar em diferentes tecidos).
O chamado stemness indices (índice de semelhança com célula-tronco em inglês) foi desenvolvido durante o pós-doutorado de Tathiane Malta, no âmbito de um projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP e coordenado por Houtan Noushmehr, professor do Departamento de Genética da FMRP-USP.
“Nossa expectativa é que, no futuro, esse índice possa ser usado na rotina clínica, auxiliando o médico a avaliar o prognóstico, a prever a possibilidade de recidivas e a planejar o tratamento de seus pacientes”, disse Malta, primeira autora do artigo.
Para desenvolver a metodologia, o grupo analisou características moleculares de células-tronco embrionárias humanas e comparou com dados de 12 mil amostras de 33 tipos diferentes de tumores depositados no banco público mantido pelo The Cancer Genome Atlas (TCGA), nos Estados Unidos.
Foram avaliados tanto dados genéticos, como sequenciamento de DNA, quanto de expressão gênica, além de fatores epigenéticos – um conjunto de processos químicos que moldam o funcionamento do genoma e, consequentemente, o perfil fenotípico, por meio da ativação ou desativação de genes.
Entre os mecanismos epigenéticos investigados no trabalho destaca-se a metilação do DNA, que corresponde à adição de um grupo metila (formado de átomos de hidrogênio e carbono) à base citosina do DNA – fenômeno que pode impedir a expressão de alguns genes.
Inteligência artificial
A comparação entre o perfil molecular das células-tronco embrionárias e das células contidas nas amostras de tumores foi feita com auxílio de algoritmos de inteligência artificial do tipo machine learning (aprendizado de máquina), capazes de analisar uma grande quantidade de dados, por meio de métodos estatísticos específicos, de modo a encontrar padrões que permitam fazer determinações ou predições.
“Nos baseamos no pressuposto de que há certa similaridade entre algumas subpopulações de células tumorais e as células-tronco pluripotentes. Usamos os algoritmos para identificar assinaturas moleculares típicas de células-tronco [assinaturas de stemness] que nos ajudassem a entender os tumores e que fossem preditivas de agressividade ou do desfecho clínico”, disse Malta.
Para cada amostra de tumor, explicou a pesquisadora, foi gerado um índice que variava de 0 a 1. “Aqueles que estavam mais próximos de 1 apresentavam maior semelhança com células-tronco e eram significativamente mais agressivos do que os tumores próximos de 0. Os tumores metastáticos, por exemplo, tinham alto índice de stemness. Além disso, ao analisar o histórico clínico dos doadores das amostras, foi possível perceber uma correlação entre alto índice de stemness e menor sobrevida”, disse.
Para alguns tipos de câncer, os cientistas observaram que o alto índice de stemness estava associado à presença de mutações. No caso de amostras de carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço, por exemplo, um escore alto se correlacionou com mutações no gene NSD1.
Segundo explicaram os autores no artigo, alterações no gene NSD1 foram recentemente associadas na literatura científica ao bloqueio da diferenciação celular e à promoção da oncogênese nesse tipo de tumor.
A análise também permitiu identificar moléculas cuja expressão estava associada à perda do fenótipo diferenciado (dedifferentiation) para alguns tipos de câncer. Maiores níveis da proteína FOXM1, por exemplo, foram associados a menor diferenciação e maior proliferação celular no câncer de mama e de pulmão. Já a expressão reduzida da proteína ANNEXIN-A1 foi correlacionada a maior índice de stemness em amostras de adenocarcinoma pulmonar.
“A aplicação desse índice em estudos futuros poderá ajudar a identificar novos alvos terapêuticos contra o câncer. Se pudermos identificar o ponto em que as células tumorais adquirem as características de células-tronco, se tornará possível buscar meios de interromper o processo e evitar a progressão da doença”, disse Noushmehr.
O pesquisador ressaltou ainda que a metodologia foi descrita detalhadamente no material de apoio on-line que acompanha o artigo. “Qualquer pesquisador interessado em quantificar o índice de stemness em suas próprias amostras tumorais pode aplicar o método, ajudando na sua validação”, afirmou.
O artigo Machine Learning Identifies Stemness Features Associated with Oncogenic Dedifferentiation integra uma edição especial da revista Cell intitulada PanCancer Atlas e está publicado em http://www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(18)30358-1.
O trabalho contou com a colaboração de cientistas de diversas instituições norte-americanas, entre elas Henry Ford Health System, Harvard University, Stanford University, The University of Texas e Sage Bionetworks. Colaboraram ainda cientistas da Bélgica (Hasselt University, Université libre de Bruxelles e Interuniversity Institute of Bioinformatics in Brussels) e da Polônia (Nencki Institute of Experimental Biology of PAS e Poznan University of Medical Sciences).
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