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Fake news atrapalham médicos em meio à pandemia

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Tratando exclusivamente de pacientes com covid-19 em um hospital de São Paulo, uma médica intensivista viu sua rotina se transformar há duas semanas em um caso de polícia. Familiares de um doente na faixa dos 40 anos, que estava sob sua responsabilidade e entubado, quiseram obrigá-la a ministrar um medicamento específico. Eles haviam lido sobre o tratamento em redes sociais.

Diante da resistência da médica, os parentes do doente chamaram a polícia e foram ao hospital ameaçando invadir a UTI.

Antes, por telefone, ela havia esclarecido  para os parentes que diante daquele quadro — “potássio estava baixo, cálcio estava baixo”, entre outros indicadores —, os efeitos colaterais poderiam ser graves.

“Ele teria arritmia e poderia morrer”, contou a médica — que pediu para não ser identificada. à DW Brasil. “Eles alegavam que eu estava sendo negligente e queria matar o paciente por não oferecer a ele a hidroxicloroquina.”

Ao chegarem, os policiais compreenderam a situação e a confusão foi resolvida. Mas o episódio somou-se a tantos que têm dificultado o trabalho dos médicos em meio a tantas fake news, informações sem base científica e a transformação da saúde em uma arena de disputa política.

Dentre dez médicos brasileiros ouvidos pela DW Brasil nos últimos dias, a pressão social pela prescrição da cloroquina, com argumentos sustentados por informações compartilhadas em redes sociais, foi a maior reclamação.

Nos últimos dias, a pressão ganhou um ingrediente a mais: o novo protocolo do Ministério da Saúde, divulgado na quarta, 20, sem embasamento científico e recomendando o uso do fármaco inclusive em casos iniciais, após incentivo do presidente Jair Bolsonaro, um entusiasta do remédio.

Diretor da medicina intensiva do Hospital do Servidor Público Estadual, o médico Ederlon Rezende diz que desmentir informações controversas virou um trabalho incorporado à sua rotina junto aos pacientes e familiares. “A empolgação com que nosso presidente fala sobre a droga [hidroxicloriquina], muitas vezes utilizando notícias falsas para apoiar suas recomendações, teve grande influência sobre a opinião pública”, avalia ele.

Mas a cloroquina não é a única solução milagrosa que, espalhada nas redes sociais, acaba influenciando a relação paciente-médico. Atuando em diversos hospitais paulistanos —entre eles o Hospital Alemão Oswaldo Cruz e o hospital de campanha montado no Ibirapuera —, o infectologista Daniel Duailibi conta que também vem ouvindo ameaças constantes de familiares de internados.

“Todos os dias há questionamentos sobre potenciais terapias, seja a hidroxicloroquina ou anticoagulantes. Isso sem falar naqueles boatos de que escovar os dentes com bicarbonato combate o vírus e outras coisas assim que colocam a gente em situações bastante difíceis”, comenta.

Duailibi avalia que a pressão tem dificultado a autonomia técnica de sua profissão. “Gera conflito o tempo todo. O paciente fica insatisfeito porque gostaria de ter recebido a medicação na qual acredita porque leu na internet e esses discursos acabam quebrando o laço de confiança entre médico e família, já fragilizado em um momento em que temos de dar más notícias por telefone”, diz ele.

“Houve um familiar que me falou que se posteriormente houvesse alguma evidência de que o anticoagulante que não prescrevemos teria beneficiado seu pai, ele iria exigir uma prestação de contas de todos os médicos que não o ministraram. Falou em tom de ameaça.”

Ele sentencia a situação com uma frase: acredita que a autonomia técnica dos médicos está sendo violada por achismos.

“Além da carga física, psíquica e emocional, aumentadas de sobremaneira, a gente ainda tem de lidar com ameaças por parte de pacientes e familiares”, comenta a médica intensivista Giovanna Zanatta de Carvalho, que também está atendendo só a casos de coronavírus em um hospital paulistano.

Carvalho ressalta que a questão não é ser contestada. “Como médica, não sou dona da verdade. Mas o problema é ser contestada e, mesmo explicando as razões, receber ameaças e xingamentos do outro lado. Isso é constante. Antes, eu falava com o paciente em um tom amistoso, agora a família quer decidir por si só um tratamento sem evidências científicas”, diz. “Essas coisas não são a gosto do freguês.”

Ela diz que as informações propagadas em redes sociais, sem embasamento científico, tornaram sua rotina “infernal”.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) já declarou que, junto à covid-19, o mundo enfrenta uma “segunda doença”: a infodemia. Na definição da instituição, trata-se de “uma abundância excessiva de informações — algumas precisas, outras não — que dificultam o acesso a fontes e orientações confiáveis quando as pessoas delas precisam”.

Relatório divulgado pela Unesco informou que, segundo dois estudos internacionais recentes, 40% dos posts relacionados à pandemia em redes sociais não são confiáveis.

“Atendo muita gente acreditando no que vê nessas fake news. Dizendo que se trata de uma doença leve e, portanto, tudo deve ser reaberto, até aqueles que dizem que ela não existe”, relata a intensivista Cristhieni Rodrigues, que atua no Instituto do Coração e no Hospital Santa Paula, ambos em São Paulo. “Então eles se negam a usar máscaras, continuam a fazer festas e aglomerações.”

O médico Ederlon Rezende também conta que tem sido interpelado por aqueles que não acreditam nas estatísticas, dizendo que os números de mortos pela covid-19 são inflados e que “agora todos os que morrem são registrados como vítimas de coronavírus”.

“Vivemos em um mundo onde o acesso à informação é fácil, mas nunca pensei que a desinformação poderia prevalecer com tanta facilidade”, diz ele. “Além de cuidar do paciente, cuidar da família, da equipe e de nós mesmos, temos que dedicar um precioso tempo para desfazer tais conceitos”, completa Novaes.

Há ainda as fotos fora de contexto. Rodrigues vem sendo questionada por gente que vê, nas redes sociais, fotos de hospitais vazios e diz, com base nisso, que não podem ser verdade que as UTIs estejam sobrecarregadas. “Não entendem que são fluxos diferentes, que há uma ala isolada para covid-19. Ou, como em muitos casos, que a foto é de três meses atrás”, ressalta.

Até médicos podem ser disseminadores de fake news

Mas conforme relatos ouvidos pela reportagem não são apenas os pacientes e seus familiares que estão suscetíveis a acreditar em informações sem comprovação científica. A própria classe médica também é vítima de fake news.

Desde a semana passada, por exemplo, circula em grupos de WhatsApp de médicos e outros profissionais da saúde, um arquivo em PDF de 16 páginas, timbrado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e com logotipos da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e do Sistema Único de Saúde (SUS). O documento, intitulado Protocolo Para Tratamento da Covid-19 recomenda o uso de hidroxicloroquina e azitromicina a partir dos primeiros sintomas — com especificações de dosagens, inclusive.

É completamente falso. Na quarta, 20, o conselho publicou uma nota em seu site desmentindo o PDF. “Acho que isso é a pior coisa: tem pessoas fazendo deliberadamente protocolos institucionais falsos, com timbre e tudo, só para divulgar um tratamento”, comenta Giovanna Zanatta de Carvalho. “Eu nunca tinha visto antes fake news de protocolo institucional.”

Claro que médicos também são influenciados pela situação. “Eu adoraria acreditar [na eficiência] da hidroxicloroquina, mas precisamos aguardar as pesquisas que estão saindo agora, com um número grande pessoas”, pontua a intensivista Cristhieni Rodrigues.

 “Muitos médicos argumentam com a falácia de que o medicamento é usado há muito tempo, não causa mal e por isso devemos utilizar. A questão é que a hidroxicloroquina é utilizada em uma população específica de pacientes que, diferentemente dos acometidos pela covid-19, não têm processos inflamatórios muito grandes em especial em células pulmonares e cardíacas.”

Já Rezende afirma que muitos de seus colegas “se esqueceram que a medicina é uma ciência, baseada no fato científico e passaram a acreditar em qualquer boato que oferecesse uma solução simples para um problema complexo.”

Ele relata que no hospital onde atua chegou a atender um médico, internado em UTI por conta de covid-19. “Certamente por conta de fake news, antes de chegar ele havia feito uso, por auto-medicação, de diferentes antibióticos que levaram a uma complicação conhecida como colite pseudomembranosa”, exemplifica, ressaltando que esse cenário tornou a recuperação do colega particularmente difícil.

“O que eu julgo mais deletério é formadores de opinião — profissionais de saúde e políticos, por exemplo — ajudarem a difundir e sustentar conceitos errados”, argumenta a geriatra e paliativista Flavia Gonçalves de Araujo Novaes, que atua num hospital em São Paulo.

Estudioso da disseminação de informações noticiosas em um mundo de algoritmos, o jornalista Daniel Trielli, pesquisador da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, vê o fenômeno como resultado do fato de que a maneira como pesamos as informações recebidas não é completamente racional. “Nossas crenças é que moldam como recebemos as informações. Usamos o que lemos para confirmar nossos vieses, e descartamos o que não se encaixa”, afirma.

“As plataformas digitais tornam mais intenso o processo de exposição seletiva, que é quando a pessoa busca a informação no viés que ela quer”, completa ele “Se é desconfortável para a pessoa acreditar que a crise é grave, que os governos que ela apoia estão falhando, e que por causa de posturas de políticos em quem ela votou mais pessoas podem morrer, essa pessoa vai descartar todas as informações sobre isso e buscar uma fonte que fala coisas mais confortáveis. Que é tudo exagerado, que é uma conspiração, coisas assim.”

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