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Herança controversa do imperador etíope Haile Selassie meio século depois
Algumas pessoas exaltam o “modernizador”, enquanto outras condenam o “autocrata” que privilegiou um grupo étnico e ignorou uma fome devastadora: cinquenta anos após o falecimento de Haile Selassie, último imperador da Etiópia, seu legado permanece alvo de debate em um país cada vez mais dividido.
Não há cerimônias oficiais planejadas para homenagear o imperador.
Em uma das últimas imagens conhecidas do Negus (rei), registrada em 12 de setembro de 1974, dia em que foi derrubado pelos militares, o imperador surge frágil, com barba longa, rodeado por soldados enquanto é escoltado para fora do palácio em Adis Abeba.
Aquele evento marcou o término de um governo que durou 44 anos, 5 meses e 9 dias, o mais extenso na história imperial da Etiópia, e representou o fim de três milênios de monarquia absoluta nesta nação do leste africano.
Menos de um ano depois, na madrugada de 26 para 27 de agosto de 1975, Haile Selassie foi assassinado pelo regime militar marxista do Conselho Militar de Administração Provisória (Derg), aos 83 anos.
Segundo relatos amplamente aceitos, o imperador foi sedado com um travesseiro embebido em éter antes de ser sufocado.
Legado ambíguo
Durante seu extenso reinado, Tafari Makonnen, que adotou o nome Haile Selassie I após sua coroação em novembro de 1930, foi considerado um “modernizador” e é visto por muitos como o fundador da Etiópia contemporânea, conforme declara o historiador especializado no país Ian Campbell.
Ele promoveu programas importantes nos setores agrícola e educacional e, graças ao seu interesse por relações exteriores e viagens internacionais, colocou o país no cenário mundial.
“Sua principal contribuição foi na área educacional. Ele próprio foi ministro da Educação e também introduziu a modernização no país, que antes não dispunha de constituição nem polícia”, afirmou Beedemariam Mekonnen, neto do imperador, com 68 anos, que passou 12 anos preso durante o regime do Derg.
Contudo, apesar desses avanços, a avaliação sobre o reinado do Negus 50 anos após sua morte é “muito ambivalente”, com críticas ao seu caráter autocrático, observa Campbell.
“A percepção varia conforme a pessoa consultada. O país parece mais polarizado etnicamente hoje do que na época do imperador. A opinião também pode depender da origem étnica e da visão do governo do imperador como um regime amhara”, explica.
No governo do Negus, os amhara detinham o poder. Atualmente, a Etiópia, segunda nação mais populosa da África, com quase 130 milhões de habitantes e composta por mais de 80 grupos étnicos, enfrenta profundas divisões internas.
Uma guerra civil entre 2020 e 2022 na região do Tigré matou centenas de milhares, e conflitos armados assolam as regiões de Amhara e Oromia, as mais populosas do país.
Desde 2018, o premiê Abiy Ahmed, natural de Oromia, governa a nação.
Fome e controvérsias
Dentro da imponente Catedral da Santíssima Trindade, no centro de Adis Abeba, imagens do falecido soberano estão espalhadas; seus restos mortais foram transferidos para o templo em 2000.
Vinte e cinco anos depois da morte, o “Velho Leão da Abissínia” teve um funeral público, ainda que não oficial. Seus restos estavam guardados numa igreja desde 1992, após serem removidos de uma vala comum onde foram colocados pelos líderes da revolução de 1974.
“Eu o admiro”, declara Fitsum, um guia informal com longos dreadlocks, que preferiu manter seu sobrenome em sigilo. Ele destacou a contribuição do imperador à educação e seu “compromisso pan-africanista”, já que Adis Abeba é sede da União Africana.
Haile Selassie permanece altamente reverenciado pelos seguidores do rastafarianismo, movimento espiritual surgido nos anos 1930 entre descendentes de escravizados jamaicanos.
Os rastas o consideram um messias negro devido a sua suposta linhagem que remete ao rei Salomão e à rainha de Sabá.
“O problema foi que ele permaneceu no poder por período prolongado, o que resultou em erros na fase final”, comenta Beedemariam Mekonnen a respeito da seca que atingiu a Etiópia em 1973 e 1974, causando entre 100.000 e 200.000 mortes conforme diferentes fontes e desencadeando uma fome severa na região de Wollo.
“Ele visitou a área, mas foi levado a locais onde não havia crise alimentar. Isso lhe trouxe consequências. Além disso, houve má administração”, ressalta. “Como em todas as ditaduras, as pessoas temiam se posicionar contra o líder”.

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