Na tentativa de evitar que a morte do irmão entre para as estatísticas de impunidade, um lanterneiro do Distrito Federal decidiu voltar para a sala de aula e se formar em direito. Maurício Araújo é irmão do auxiliar de serviço gerais Antônio de Araújo, encontrado morto em 2013 após uma abordagem policial em Arapoanga, região de Planaltina.
Dois anos e seis meses depois do assassinato, ninguém foi punido pelo crime. “Foi cinco meses e 21 dias de luta, de decepções, humilhações, de fatos que eu nunca imaginei que pudesse acontecer comigo”, diz Maurício, citando o período em que o corpo ficou desaparecido.
Araújo desapareceu em 27 de maio de 2013,após ser abordado por policiais militares da região dentro da chácara de um sargento da corporação, no Córrego do Atoleiro. Os restos mortais foram encontrados quase seis meses depois, em 21 de novembro, em uma área de cerrado em outra região de Planaltina.
No mesmo dia, o irmão diz ter feito uma promessa a si mesmo. “[Prometi] que a morte dele não seria mais uma, que a morte dele seria um exemplo de justiça a ser seguido”, afirma. Com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele conseguiu vaga em uma faculdade da Asa Sul, no fim do ano passado.
Maurício mora e trabalha em Planaltina, e usa metade do salário de R$ 2 mil para custear os estudos. Neste mês, ele concluiu o primeiro ano de faculdade e já definiu: quer atuar como promotor.
“Se [o julgamento] passar de quatro anos, eu estarei como assistente de acusação. Isso é fato, já coloquei na minha cabeça. São meses contados, dias após dias, igual eu conto desde o desaparecimento do Antônio. Todos os dias, eu confiro os processos que tem na Justiça, os andamentos, procuro conhecer. Se demorar, eu estarei como assistente de acusação e ninguém vai me impedir”, afirma o estudante.
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O lanterneiro tem 30 anos, é casado e pai de três filhos pequenos. Sem estudar há oito anos e com o ensino médio completo, ele diz que decidiu voltar à sala de aula após ouvir desaforos, durante a investigação da morte do irmão. “Me cansei muito de você chegar nos lugares e ser visto, simplesmente, como um peão.”
A primeira audiência do “caso Antônio” está marcada para 22 de fevereiro, no Tribunal de Justiça de Planaltina. Dois policiais militares denunciados à Justiça estão soltos e continuam na corporação, cumprindo trabalho administrativo no Batalhão de Planaltina.
Sem solução
O desaparecimento de Antônio Araújo aconteceu durante a gestão do ex-governador Agnelo Queiroz, mas a família só recebeu uma resposta do GDF neste ano. Em julho, após o indiciamento dos suspeitos, a família decidiu enterrar a ossada do auxiliar, que permanecia no Instituto Médico Legal (IML).
Responsável pelas investigações, a delegada Renata Malafaia diz que o homem estava em crise de abstinência alcoólica e, por isso, falava sozinho quando saiu para comprar bebida e passou pela chácara de um PM. “Isso fez os policiais acreditarem que ele estava invadindo a chácara com outra pessoa”, afirmou a delegada.
Renata disse que os policiais torturaram Araújo para que ele dissesse onde estava o possível comparsa. A delegada também informou que, devido às agressões, a vítima teve uma hemorragia, mas que não foi sentida pelo clima e pela abstinência.
“Depois que ele deixou a 31ª DP, ele caminhou pelo mato, o que fez acelerar a hemorragia. Tanto que ele morreu a 1,5 quilômetro da delegacia, muito perto para quem queria matar alguém e esconder o corpo”, declarou em julho.
Os dois sargentos denunciados pelo MP tem uma ocorrência registrada em Planaltina, em 2011, por lesão corporal. O crime de tortura seguida de morte tem com pena de 8 a 16 anos de prisão, aumentada entre um sexto e um terço quando cometido por agentes públicos. Se condenados, eles podem ser expulsos da corporação. Outro processo tramita na Corregedoria da PM.
O caso de Antônio ficou famoso pela semelhança com a história do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido em 14 de julho de 2013 após operação policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
Imagens de uma câmera de segurança registraram o ajudante de pedreiro entrando em um carro da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Em junho, o caso foi reaberto pela polícia do Rio de Janeiro.
Versões
Na época do desaparecimento de Antônio de Araújo, o delegado Leandro Ritt, da DRS, chegou a dizer que a principal hipótese a respeito do desaparecimento dele era “abandono do lar”. Ele disse que, apesar de não ter tido “comportamento de ladrão”, Araújo era uma pessoa “desorientada” por causa do alcoolismo.
“Ele tem um quadro condizente com o das pessoas que desaparecem, que simplesmente desaparecem por vontade própria. É o abandono do lar. Quem sabe ele está perdido nesse mundo afora? Muito provavelmente. Uma pessoa alcóolatra sumir, ganhar o mundo, é muito comum. É o que mais você vê”, disse Ritt para a época.
O então diretor da Polícia Civil, Jorge Luiz Xavier, compartilhava a opinião do delegado. “Parece que ele tinha algum distúrbio mental ou tendência a isso. A DRS, que está cuidando desse caso, já tentou de todo jeito. Já fizemos buscas nos IMLs da redondeza, para ver se o corpo dele apareceu em algum lugar e nada.”
No dia 28 de agosto de 2013, três meses após o desaparecimento, Xavier disse que ainda havia dúvidas de que Araújo tenha sido levado para a delegacia, apesar da investigação da PM e da confirmação de Ritt.
“Não está claro isso. Embora exista essa declaração da família, isso não está claro, mas não foi descartado também. As viaturas aqui não têm GPS. Mas o caso dele, há grandes possibilidades de ser confusão mental e de que ele tenha saído andando por aí.”
O auxiliar de serviços gerais chegou a ser tratado como “um zé” pelo então secretário-adjunto da Secretaria de Segurança Pública do DF, Paulo Roberto Batista de Oliveira, ao afirmar que não parecia ‘lógico’ que policiais militares fossem responsáveis pelo sumiço e morte de Pereira.
“Tenho oito anos de Corregedoria e investiguei muitos PMs. Não me parece lógico, não estou dizendo que não ocorreu, que oito policiais tenham matado um ‘zé’ porque ele entrou na casa do cara”, disse.
A declaração provocou revolta na família do auxiliar de serviços. “Eles acharam que mataram um ‘zé’ e que ninguém ia atrás do ‘zé’. Mas atrás desse zé tinha alguém”, disse. “Como pode chamar meu irmão de zé? Matou meu zé, e meu zé tinha dono e agora a polícia vai ter que dar explicação para a população”, disse o irmão de Antonio, Silvestre Araújo.
Oliveira se desculpou no dia seguinte, dizendo que não tinha preconceito “contra qualquer tipo de pessoa”.
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