Você já fez a experiência de dar leite ao seu cachorro ou gato? E a um golfinho? As perguntas parecem jocosas, mas, para Antonio Herbert Lancha Jr., professor de nutrição da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), esse teste simples acabaria com o papo de que o homem é o único animal que toma leite mesmo depois de virar adulto.
“Isso acontece porque ele é o único que tem acesso à bebida”, afirma Lancha Jr., fazendo referência a um dos argumentos preferidos pelos desertores do alimento.
Agora, existem evidências de que mais de 10 mil anos atrás, ainda na última Era do Gelo, de fato o produto da vaca era uma espécie de veneno após a infância.
Isso porque, ao contrário das crianças, os mais velhos eram incapazes de produzir lactase, a enzima que quebra a lactose, o açúcar presente na bebida.
Mas, de acordo com um artigo publicado na revista científica Nature, uma das mais respeitadas do planeta, um fenômeno interessante aconteceu quando a agricultura e a criação de animais substituíram a caça: uma mutação genética permitiu que o corpo humano passasse a fabricar lactase.
Transmitida de geração em geração, a alteração no DNA se propagou pela Europa. Foi o estopim para a chamada “revolução do leite“. Isto é, com a introdução da bebida na rotina alimentar, um continente inteiro encontrou terreno fértil para evoluir e espalhar descendentes.
Se estivéssemos falando de uma bebida qualquer, sem atributos marcantes, dificilmente a habilidade de tolerá-la modificaria os rumos da humanidade a ponto de falarem em revolução. “A Nutrient Rich Foods (NRF) classifica o leite como alimento de alta densidade nutricional”, destaca a nutricionista Olga Amancio, presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban). Isso significa que ele contém mais nutrientes do que calorias. “Para essa classificação, o preço também é levado em conta”, informa a professora.
Um dos compostos benéficos que abundam no produto da vaca, cujo litro pode ser adquirido por aproximadamente 4 reais, é o cálcio.
Em geral, recomenda-se que um adulto consuma, diariamente, mil miligramas do mineral – essencial sobretudo aos ossos.
Pois com apenas um mísero copo de leite dá para cobrir um quarto dessa necessidade. Falando assim, parece moleza atingir a cota, certo?
Mas não é. Segundo Sebastião Radominski, professor de reumatologia da Universidade Federal do Paraná, todas as regiões do Brasil falham nesse quesito. “Inquéritos alimentares mostram que nossa ingestão média é de 400 miligramas”, conta.
A verdade é que, tirando leite e derivados, as outras fontes do nutriente – como vegetais verde-escuros – contribuem pouco na soma. Está aí outro ponto polêmico. Afinal, analisando direitinho, dá, sim, para dizer que as folhas exibem níveis bacanas do mineral.
Mas o que interessa para os entendidos é quanto disso o corpo consegue utilizar. “Quando o cálcio vem do leite, 30% dele é absorvido. Se for proveniente de vegetais, a exemplo do brócolis, esse valor cai para 5%”, compara a nutricionista Lígia Martini, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Vamos aproximar esse dado do seu dia a dia: há estimativas de que, para incorporar a mesma quantidade de cálcio ofertada por um copo de leite, deveríamos comer 4,5 porções de brócolis. Quem prefere espinafre teria que abocanhar 16 porções. É muita coisa.
De olho nisso, talvez passe pela sua cabeça fazer um exame de sangue para verificar como anda a circulação de cálcio no organismo. Um recado: provavelmente estará tudo certo e os lácteos parecerão dispensáveis. Não se engane. Mesmo que o consumo do nutriente seja baixíssimo, uma substância chamada paratormônio nunca deixa ele baixar no sangue, já que isso provocaria uma série de estragos.
Mas, se não vem da alimentação, de onde surge esse cálcio? “Ele é retirado dos ossos”, avisa a endocrinologista Marise Lazaretti Castro, chefe do Setor de Doenças Osteometabólicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Caso isso não aconteça, temos um caminho de via única: o cálcio cai na circulação, mas não volta para a ossatura. É uma estrada que tende levar à osteoporose, mal que pode acabar em fraturas.
O leite ajuda ou não contra a osteoporose?
Embora o leite ostente o mineral, alguns estudos chegaram a contestar a relevância da bebida na prevenção do quebra-quebra ósseo. Um desses trabalhos foi realizado na Universidade de Uppsala, na Suécia, e fez muito barulho na época de sua publicação, em 2014.
Os pesquisadores analisaram os hábitos alimentares de 61 433 mulheres e 45 339 homens por meio de questionários respondidos pelos participantes – as moças preencheram a ficha duas vezes e os rapazes, uma.
A análise das informações culminou na seguinte conclusão: o alto consumo de leite (três ou mais copos diários) não só deixou a desejar na proteção dos ossos como até elevou o risco de fraturas.
“Nossa hipótese é de que a culpa recai sobre a galactose”, aponta o epidemiologista Karl Michaëlsson, principal autor da pesquisa sueca. Segundo ele, quando essa substância – formada a partir da quebra da lactose – é injetada em animais, observa-se uma morte prematura em decorrência de reações como a inflamação. “E esses fatores também estão por trás de fraturas por fragilidade óssea em idosos”, relaciona. Mas muita calma antes de derramar o copo na pia…
Os próprios autores pedem cautela na interpretação dos dados. “Definitivamente precisamos de novas pesquisas”, assume Michaëlsson. Para os experts na área, há motivos para ficar com o pé atrás mesmo. O primeiro ponto é que se trata de um estudo de observação e associação.
Traduzindo: ele quantificou a ingestão de lácteos e, em paralelo, a ocorrência de fraturas. Não testou, portanto, uma relação de causa e efeito. “Às vezes, as pessoas já têm fragilidade óssea e, por isso, consomem mais leite. Isso poderia dar a falsa ideia de que o alimento causou a fratura”, analisa Marise.
Outro ponto é que não dá para ter certeza de que os voluntários listaram fielmente o que comeram. Não por malandragem, mas por esquecimento. Para embolar, quem disse que o padrão alimentar é igualzinho todo dia, por anos a fio?
Tem mais uma peça estranha na história. Depois que é digerida, a lactose vira galactose e glicose. “Entre essas duas, a primeira é absorvida mais rapidamente no organismo”, ensina Lancha Jr. “Por isso, a probabilidade de esse consumo gerar uma resposta inflamatória é pequena”, explica.
Só quem tem uma doença chamada galactosemia não assimila direito essa molécula – aí ela acaba se acumulando no corpo. “Mas é uma condição bem rara”, esclarece a médica Maria Raquel Carvalho, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sem falar que o quadro se manifesta logo nos primeiros dias de vida, quando o bebê recebe o leite materno.
Para a professora, pode até ser que a galactose não seja lá tão inócua para quem não tem a doença. Mas essa é uma suposição que deve ser investigada, até para esclarecer dúvidas básicas, como qual seria a quantidade ameaçadora e para quem. “E o leite é um produto extremamente complexo.
Por isso, acho delicado colocar a culpa em uma única molécula”, pondera Maria Raquel. Sem contar que, para ter ossos fortes, não adianta só apostar nos lácteos. Tem que fazer exercício, tomar sol, caprichar nas proteínas…
O fato é que depender da lembrança das pessoas sobre sua dieta é uma das limitações mais citadas entre estudos de nutrição. Não que sejam achados descartáveis. Só é difícil chegar a conclusões fechadas a partir deles – o que sobram, muitas vezes, são suspeitas.
Nesse aspecto, dá para entender por que um trabalho do Instituto de Saúde Carlos III, na Espanha, e de outras instituições chamou a atenção no fim de 2016.
Em vez de ficar apenas em questionários, os pesquisadores descobriram biomarcadores no sangue – como se fossem rastros – capazes de denunciar a real ingestão de leite entre certas populações.
Não foi só isso. Ao mirar em mais de 7 mil indivíduos, os cientistas não encontraram uma conexão entre a bebida e o maior risco de doenças cardíacas, assunto ventilado por aí.
O receio tem certo fundamento. Sempre aprendemos que a vaca produz um líquido cheio de gordura saturada que, por décadas, ocupou o posto de pior inimiga do coração. Tanto é que, lá na década de 1970, os Estados Unidos publicaram diretrizes para incentivar a restrição desse nutriente.
Um raciocínio que, para o zootecnista Marco Antonio Sundfeld da Gama, da Embrapa Gado de Leite, é simplista demais. “Já foram identificados mais de 400 ácidos graxos no leite“, esclarece, usando o nome técnico de batismo das gorduras. Sim, elas são predominantemente saturadas. Contudo, segundo Gama, não significa que atuam de forma semelhante.
Entre os tipos gordurosos detectados no leite estão o esteárico, palmítico e mirístico. De acordo com a nutricionista Marcia Gowdak, diretora do Departamento de Nutrição da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), o primeiro não tem influência sobre o colesterol. “Já os outros dois até aumentam sua versão ruim, o LDL, mas também elevam a concentração do bom, o HDL”, descreve.
Por essas e outras, vários estudos não incluem a bebida na lista de adversários do peito. A bem da verdade, mesmo depois que as fontes gordurosas foram incriminadas de causar uma epidemia de obesidade e diabete tipo 2 em terras americanas, a prevalência dessas encrencas triplicou por lá. Possivelmente por causa do abuso de açúcar.
Não é que abarrotar o prato de fontes de gorduras está permitido. O perigo mora na troca que as pessoas fazem. “Quem tira leite e derivados dificilmente coloca outras fontes de proteína no lugar”, analisa Marcia.
Nesse cenário, quem reina é o carboidrato. Ora, o iogurte é substituído por torradinhas, o leite dá espaço para os sucos e por aí vai. Hoje há pistas de que exagerar nesse nutriente – especialmente quando vem de itens refinados e com açúcar – aumenta a concentração de moléculas de colesterol LDL pequenas e densas. “E elas são facilmente oxidáveis, ou seja, têm maior capacidade de dar início à formação de placas nas artérias”, expõe Gama.
Embora ache que essa relação entre formatos de colesterol e periculosidade mereça investigação mais minuciosa, o cardiologista Rogério Krakauer, da Socesp, é enfático: “Não devemos vilanizar a gordura saturada. Ela pode, sim, fazer parte de uma dieta balanceada”.
Para ter ideia, se o indivíduo nunca passou por um susto cardíaco e investe em carnes magras e vegetais, Marcia avalia até que dá para levar o leite integral pra casa numa boa. “A gordura dá saciedade, o que pode ajudar no controle do peso”, ressalta.
Já existem indícios de que essa versão da bebida, que domina 70% do mercado brasileiro, não só é amiga da cintura como auxilia a afugentar outros males ligados aos quilos a mais. Em experimento da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, fãs do leite integral – identificados por biomarcadores sanguíneos – eram menos propensos a encarar o diabete tipo 2.
Para quem já tem a doença, aí vale repensar o teor de gordura. Ainda assim, não há razão para abolir o leite. Segundo Lancha Jr., um trabalho recente mostrou que os diabéticos que tomavam a bebida apresentavam melhor controle glicêmico. “Uma teoria é que ela deixaria a flora intestinal com perfil mais positivo, o que reduziria a inflamação no corpo”, detalha.
Antes de se esbaldar com o leite integral – caso não haja contraindicação -, cabe uma autoavaliação honesta da alimentação.
“É que comemos mais carne gorda, excedemos na fritura e, apesar de investirmos no feijão, frequentemente é com calabresa”, reflete a nutricionista Cynthia Antonaccio, da Consultoria Equilibrium, na capital paulista.
“Por isso, sou fã do semidesnatado, que tem poucas calorias, teor moderado de gorduras e sabor”, defende. O desnatado, coitado, não é tão popular. “Além de não conter as vitaminas A e D, ele ocasiona um rápido esvaziamento gástrico. Aí a fome surge mais cedo”, argumenta Lancha Jr.
Independentemente do grau de gordura, um papo que tem preocupado bastante gente é que o leite contribuiria para a ocorrência de alguns tipos de câncer. Tudo por causa dos hormônios que passam da vaca para a bebida.
“Em pesquisa recente, cientistas viram que essas substâncias realmente entram no corpo. Porém, não são absorvidas”, tranquiliza Flávia Fontes, veterinária da UFMG e responsável pelo movimento Beba Mais Leite.
Para o time de estudiosos detectar vestígios de hormônios na circulação, precisou subir mil vezes a concentração deles no leite.
Tem mais uma prova de que sua barra está limpa. No último relatório do Fundo Mundial de Pesquisa em Câncer, conclui-se que as provas a respeito da conexão desses alimentos com tumores (os de próstata e ovário estão entre os mais citados) são limitadas.
“O que temos de dado robusto é que o sobrepeso e a obesidade elevam o risco de desenvolver esses tumores”, diz a nutricionista Maria Eduarda Diógenes Melo, da Coordenação de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer. “A população oriental possui alta prevalência de intolerância à lactose e acaba excluindo o leite. Nem por isso ela tem menos câncer”, analisa o cirurgião oncológico Samuel Aguiar Júnior, do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo.
A intolerância à lactose
Não dá para negar que ela anda na boca e no corpo do povo. Da mesma forma que nossos cabelos começam a nascer brancos, a fabricação da enzima lactase, que quebra esse açúcar, é comprometida com o tempo. Na ausência da substância, a lactose fica dando sopa no organismo – o que causa gases, cólicas e outros desconfortos.
Mesmo assim, normalmente as pessoas toleram algum teor dela. Vale testar. “Também orientamos fracionar a oferta de lácteos durante o dia. Aí dá tempo de o intestino refazer seu estoque da enzima”, sugere Marise, da Unifesp.
E se você não tiver certeza do quadro, melhor aguardar o diagnóstico e as orientações de um especialista. É que, ao excluir de vez a lactose, o corpo naturalmente reduz ou até para de gerar lactase – com isso, cria-se um problema que às vezes nem existia.
“E hoje há evidências de que a lactose é importante para promover o equilíbrio da microbiota intestinal”, conta Marcelo Bonnet, engenheiro de alimentos da Embrapa Gado de Leite.
A alergia é outro papo. “Trata-se de uma resposta exagerada do sistema imune contra a proteína do leite“, define Ariana Campos Yang, coordenadora do Ambulatório de Alergia Alimentar do Hospital das Clínicas de São Paulo. Logo, nada a ver com a lactose.
Mas, dependendo do tipo de alergia, alguns sintomas são similares. Então, o que ajuda a nortear o diagnóstico é a idade. “A intolerância dificilmente surge no bebê”, ensina Ariana. Já a alergia se revela no início da vida e, em geral, é transitória – vai até uns 5 anos.
Para proteger o pequeno, muitos pais evitam o leite de vaca após o primeiro aniversário. Mas, se ele não mamar mais no peito, isso não o beneficiaria.
Pelo contrário. “Atualmente, sabemos que retardar essa introdução até sobe o risco de alergia, porque se perde a fase em que o corpo da criança está preparado para aprender”, diz a especialista.
Se o leite arrebatou seu paladar e sempre fez parte da sua história, não há razão para botá-lo de lado. Até porque, a julgar pelo serviço prestado há tempos à humanidade, dá pra concluir que ele tem crédito nessa história.
O tipo perfeito para você
O teor de gordura é só um dos aspectos que saltam aos olhos na hora da compra. Hoje, há leites com níveis extras de proteína, vitamina D, ferro, fibras e por aí vai.
“Se a alimentação não suprir a quantidade necessária desses elementos, os produtos enriquecidos podem fazer a diferença”, diz Marcia Gowdak, nutricionista da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo. As fibras, por exemplo, andam em falta no prato dos brasileiros.
“Mas o ideal é corrigir esse tipo de situação paralelamente, para não ficar dependente dos leites fortificados”, orienta Marcia.
Este conteúdo foi originalmente publicado no site da Saúde.
Fonte Exame
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