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O apagão tecnológico que ilustrou a alarmante vulnerabilidade da nossa sociedade digital

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Por volta das duas horas da madrugada do último dia 19 de julho, durante a minha tradicional revisão de final de dia das notícias internacionais, eu me deparei com uma pequena reportagem muito peculiar publicada num jornal inglês. Segundo ela, diversas fontes por toda a Austrália estavam relatando a ocorrência de um “crash” irreversível dos computadores que utilizam o sistema operacional Windows, produzido pela empresa Microsoft.

Em decorrência deste inusitado acontecimento, um enorme número de voos havia sido cancelado, uma vez que os aeroportos australianos simplesmente ficaram totalmente sem condições operacionais, devido à perda de todo seu aparato digital.

Dado o avançado da hora, eu logo assumi se tratar apenas de um evento regional, provavelmente resultado de mais um ataque de hackers buscando alguma forma de resgate financeiro ou apenas 15 minutos de fama. Nada que afetasse a minha necessidade imperiosa de coletar uma série de ciclos de sono REM antes de enfrentar um novo dia num mundo cada vez mais caótico e imprevisível.

Nem é preciso dizer que, logo depois de acordar e iniciar a minha também habitual varredura matinal do estado [crítico] do mundo, eu fui surpreendido com uma infindável série de manchetes catastróficas dando conta que, aquilo que se iniciara na terra dos cangurus e do bumerangue, havia rápida e inexoravelmente se espalhado por boa parte do mundo, particularmente no hemisfério norte, gerando um efeito dominó que poderia ser descrito como um verdadeiro tsunami digital.

Enquanto eu tomava meu café da manhã e vasculhava os detalhes deste verdadeiro terremoto do cyberspace, usando o meu MacBook – que o Big Bang seja louvado!-, eu comecei a descobrir que além de aeroportos por todo o mundo (apenas nos EUA, 7 mil voos tiveram que ser cancelados), hospitais, canais de TV, sistemas de pagamento de empresas, e toda sorte de operações automatizadas e, consequentemente, completamente a mercê de sistemas rodando o sistema operacional Windows, tinham sido afetadas.

No total, estima-se que por volta de 8,5 milhões de computadores espalhados por todo este nosso pedaço de rocha azul passaram a exibir em suas telas um outro tom de cor menos poético: o chamado “monitor azul da morte”, que impedia qualquer tentativa dos usuários em reiniciar suas máquinas. Tudo isso a um custo estimado de 5,4 bilhões de dólares apenas para as 500 maiores empresas americanas, segundo a revista Forbes.

Depois do pânico inicial, logo ficou provado que o que havia provocado esta verdadeira catatonia digital global não tinha sido uma falha do sistema operacional da Microsoft, mas sim um “bug” (erro) numa atualização do programa Falcon Sensor, desenvolvido pela empresa de segurança cibernética CrowdStrike, que serve a um enorme número de empresas mundo afora. Ironicamente, a função principal do Falcon Sensor é proteger computadores de um ataque perpetrado por hackers.

Ao invés, graças a um erro banal, escondido em uma única linha do programa de atualização do Falcon Sensor, todos os computadores rodando Windows que receberam esta atualização, via internet, colapsaram como que atingidos por um meteoro virtual que destruísse por completo o seu mundo digital. E diferentemente dos dinossauros que desapareceram da face da Terra depois do impacto de um meteoro real, 65 milhões de anos atrás, sem ter a menor ideia do que estava acontecendo com eles e seus vizinhos– uma lenta, mas inexorável extinção -, dezenas de milhões de seres humanos, forçados a dormir por várias noites nos chãos de aeroportos inoperantes, ou impedidos de serem admitidos, ou operados em algum hospital, ou mesmo funcionários incapazes de receber seus parcos salários, de repente se deram conta, para seu total espanto e choque, quão reféns e dependentes toda a nossa espécie está ficando do tal arcabouço digital que hoje rege quase todos os processos vitais da vida humana.

Na realidade, na nossa busca obsessiva pela conveniência, propiciada por um sem número de aplicativos de celulares e programas computacionais, o ser humano vem cada dia mais renunciando de forma decisiva à sua agência natural, ou seja: a sua capacidade de agir no mundo que nos cerca, seja física ou intelectualmente, por conta própria.

A mesma agência que nos trouxe até aqui, depois de milhões de anos enfrentando as intempéries e desafios impostos pelo mundo que nos cerca. A cada dia que passa, todos nós estamos abandonando esta receita de sucesso evolutivo em prol desta tal conveniência, sem nem ao menos saber quais são os riscos existenciais sendo criando ao nosso redor com nossa total conivência.

Segundo especialistas da área da tecnologia de informação (TI), este incidente global demonstrou categoricamente que pequenas, média e mesmo grandes empresas ao redor do mundo não estão nem minimamente preparadas para enfrentar contingencias como a ocorrida na semana passada, por não disporem de nenhum plano B eficaz o suficiente para prevenir, ou mesmo rapidamente solucionar tais incidentes pontuais. Muito menos outros mais graves!

Ou seja, como fruto da busca obsessiva pelo lucro infinito de um punhado de empresas de tecnologia da informação – e seus bilionários de ocasião – que detém o monopólio deste verdadeiro universo digital que está sendo construído, em meio ao voo, sob a falsa premissa de uma inexpugnabilidade e eficácia que, como demonstrado, não passam de bravatas de marqueteiros e evangelistas da Igreja da Tecnologia, todo o mundo está sujeito a enfrentar outras falhas catastróficas de sistemas digitais essenciais.

Ou seja, um monstro de complexidade quase inimaginável ou compreensível para a vasta maioria da humanidade foi criado e solto da jaula sem que tenhamos a disposição formas ou processos de domá-lo ou mitigar os efeitos dos seus rampantes ou crises temperamentais.

Na realidade, os mesmos especialistas de TI alertam que não só outros colapsos globais vão ocorrer novamente e com maior frequência, mas provavelmente eles terão um impacto ainda mais grave no futuro, especialmente se e quando os ditos “sistemas espertos”, baseado em tecnologias da dita inteligência artificial”, que não é nem inteligente, nem artificial – mas esta é uma outra história -, passarem a ocupar o lugar dos sistemas de controle e automação digital atuais.

No seu brilhante livro, “O Atlas da Inteligência Artificial” (Yale University Press, 2021), a pesquisadora americana de IA da própria Microsoft, Kate Crawford, nos alerta como o uso da IA na automação de sistemas extremamente sensíveis, como aquele responsável pela defesa de um ataque nuclear, sem que haja nenhuma supervisão humana no processo de tomada de decisão, poderia facilmente desencadear uma catástrofe terminal da civilização humana.

Basicamente, a visão proposta por alguns estrategistas militares, fieis adeptos da Igreja da Tecnologia, é que para evitar as consequências devastadoras de um ataque surpresa de uma outra potência nuclear, um sistema de defesa no futuro deveria implementar um programa baseado na IA para antecipar, baseado num conjunto de indícios, um ataque surpresa de um inimigo qualquer.

Desta forma, o país sob ataque iminente poderia responder de forma extremamente rápida, antes mesmo do início do ataque, sem que fosse necessária nenhuma intervenção humana no processo de tomada de decisão.

Para estes analistas, este seria a forma mais eficaz de se defender. Seria mesmo? Como bom espírito de porco, nascido no bairro da Bela Vista, eu concordo plenamente com a resposta de Kate Crawford a este delírio. Vejamos por quê.

E se de repente, devido a um erro de programação qualquer – uma linha apenas seria o suficiente – o sistema de IA que controlasses este “maravilhoso” sistema de defesa e centenas de ogivas nucleares decidisse que, devido à perda de um jogo de futebol na final de uma Copa do Mundo, o inimigo derrotado no campo, como vingança desmedida, decidisse por um ataque nucelar surpresa ao país do time vencedor?

Se você, meu caro leitor, acha esta hipótese muito remota, eu proponho uma outra mais tangível. E se por acaso, a empresa responsável pela atualização do software de proteção deste sistema de defesa “inteligente” criasse um programinha com um pequeno erro de código, nada mais do que uma linha errada, que levasse a um erro no programa principal, resultando no início de um ataque nuclear massivo contra um país qualquer, sem qualquer intervenção humana?

E agora, José? Pelo menos os dinossauros desapareceram sem terem a menor ideia do que estava acontecendo. No nosso caso, a coisa seria muito pior, pois todos os sobreviventes de tal hecatombe teriam a exata noção do inaceitável preço a ser pago pela total renúncia ao nosso direito inalienável de continuar a manter o nosso destino, individualmente e enquanto espécie, sob o total controle da verdadeira e única inteligência jamais criada: aquela gerada pelo processo de seleção natural que, ao longo de milhões de anos, moldou, entre outros sistemas nervosos animais, o Verdadeiro Criador de Tudo, que todos nós carregamos no espaço que fica entre as nossas orelhas!

P.S. Agora em agosto eu estarei lançando o meu primeiro livro de ficção científica – Nada Mais Será Como Antes – onde eu abordo, em grandes detalhes, uma outra fragilidade existencial da nossa civilização digital que, aparentemente, passou desapercebida nos últimos 85 anos, mas que, a qualquer momento, pode revelar a sua face, fazendo o episódio da semana passada parecer apenas um passeio no parque. Tudo isso sem nem precisar da ajudinha decisiva de nenhuma empresa de cibersegurança!

CNN

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