Brasil
O coronavírus surgiu mesmo no Brasil? E por que isso importa?
Até semanas atrás não havia muitas dúvidas sobre a origem do Sars-CoV-2, o novo coronavírus responsável pela maior pandemia em 100 anos. O vírus, pelo que se sabia, havia nascido na China, e se espalhado pelo mundo a partir da província de Wuhan. A certeza era tanta que o presidente americano Donald Trump começou a chamar a doença de Kung-Flu, um trocadilho com a arte marcial chinesa, impulsionando a divisão entre os dois países. Pois as últimas semanas trouxeram dúvidas sobre essa certeza, e abriram novas frentes de pesquisa sobre o tratamento da covid-19.
Nesta quinta-feira a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) divulgou que o Sars-CoV-2 foi encontrado em duas partículas do esgoto de Florianópolis em novembro de 2019. O estudo, ainda preliminar, indica que o vírus poderia já estar na capital de Santa Catarina, mais de um mês antes de ser identificado e anunciado globalmente.
O estudo pode indicar que o novo coronavírus chegou às Américas dois meses antes do que se sabia — ou, até, que pode ter nascido no continente. O primeiro caso oficialmente reportado foi em 21 de janeiro de 2020, nos Estados Unidos. No Brasil, acreditava-se que o vírus teria chegado entre fevereiro e março.
A primeira descrição do Sars-CoV-2 é de 31 de dezembro de 2019, em Wuhan. No dia 12 de janeiro autoridades chinesas divulgaram o sequenciamento de um novo coronavírus que pode levar à síndrome respiratória que desde então já teve mais de 10 milhões de casos confirmados no mundo. Os primeiros casos da doença na Europa foram reportados em 24 de janeiro.
Mas pesquisas semelhantes às feitas pela UFSC constataram que o vírus estava presente no esgoto de Wuhan, na China, em outubro, e na Itália, no início de dezembro. No final de junho, cientistas da Universidade de Barcelona divulgaram que encontraram amostras do vírus em esgotos da cidade em março de 2019. Segundo o time de pesquisadores espanhóis, a descoberta foi feita em testes com amostras de esgoto para identificar a possibilidade de novos surtos virais.
Segundo a doutora em Biotecnologia Gislaine Fongaro, da UFSC, a coleta no esgoto permite identificar diferentes variedades do vírus em circulação. A coleta em diferentes momentos — em Florianópolis foram feitas de novembro a março — permitem entender a história do vírus e sua mutação. São informações importantes, por exemplo, para o desenvolvimento de vacinas.
“O estudo em Florianópolis é muito interessante, e mostra que o vírus já estava circulando há tempo”, diz Ralcyon Teixeira, infectologista do hospital Emílio Ribas. “Mas as evidências ainda mostram que o vírus veio da China pelos morcegos. É importante essa ação de rastrear o vírus para entender a sua forma de disseminação, como isso é feito, e se existem marcadores que possam ser usados para termos uma ação mais proativa”.
A professora de infectologia Juliana Lapa, da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, também reforça que todas as evidências mais concretas até agora apontam para o surgimento do vírus em Wuhan, e que descobrir exatamente onde o vírus nasceu a essa altura, e não quando ele de fato começou a se espalhar, pode não influenciar necessariamente nas medidas de autoridades públicas. Ela afirma ainda que, baseado em casos recentes brasileiros, como a epidemia do vírus da zika, considera difícil que um vírus com a taxa de letalidade do Sars-CoV-2 tenha começado a se espalhar no Brasil sem que os médicos locais notassem.
“Pela avaliação genômica do vírus, pelas mutações apresentadas, dá para saber de forma aproximada [de onde um vírus veio]. Mas não é matemático. É importante do ponto de vista epidemiológico”, diz a professora. Ela afirma que, na biologia, há frentes dedicadas a estudar a ancestralidade dos vírus, ainda que não haja um reflexo direto nas políticas imediatas. “Há todo um estudo filogenético, de ancestralidade, uma área da biologia focada em conhecer os movimentos de RNA dos vírus”, diz.
O grande objetivo dos estudos que buscam saber mais sobre o Sars-CoV-2 é auxiliar nos estudos para uma vacina. As vacinas em estudo contra o novo coronavírus enfrentam duas frentes de incerteza principais. Uma delas é a capacidade de mutação do vírus. Em junho, um estudo publicado nos Estados Unidos mostrou 14 possíveis mutações — uma delas, é no revestimento de proteína do Sars-Cov-2 e pode aumentar a capacidade de infecção.
Outra incerteza é a duração dos anticorpos no organismo — há relatos de pacientes que meses depois viram sua taxa de anticorpos cair drasticamente. É normal que vacinas contra doenças como a gripe sejam alteradas ao longo dos anos para se adaptar às mutações do vírus Influenza. Uma dessas mutações levou à pandemia da H1N1, há uma década, causada por um subtipo de influenza A.
O sequenciamento genético do Influenza é parte da rotina de pesquisadores de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz. No caso da H1N1, ele permitiu a criação de uma vacina apenas três meses após o início das transmissões, em 2009. No caso do novo coronavírus, não havia vacina pronta a ser adaptada — uma vez que pandemias anteriores causadas por coronavírus, como a Sars, em 2003, não foram controladas por vacinas.
Por isso, entender onde o Sars-Cov-2 surgiu, e como ele se transformou ao longo dos meses, pode ser fundamental — para além dos debates políticos. Parte da investigação está sendo feita também no Brasil, como mostrou o estudo divulgado pela UFSC.
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