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Paralelo à Previdência, Bolsonaro quer mudar as regras de trânsito
Bolsonaro vai à Câmara, mas para entregar PL que suaviza regras para a suspensão da CNH. Parlamentares veem no gesto a prova da falta de prioridade do governo; outros, uma forma de estreitar relações com o Legislativo
Menos de uma semana depois de o presidente Jair Bolsonaro ir a pé do Palácio do Planalto à Câmara dos Deputados, ele voltou à Casa legislativa para entregar pessoalmente ao Congresso o projeto de lei que altera o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e regras da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), ampliando o prazo de validade de cinco para 10 anos (veja quadro). O gesto dividiu parlamentares. Alguns veem como um gesto positivo para o aprimoramento da relação entre Executivo e Legislativo. Outros avaliam como desnecessário o deslocamento para a entrega de um texto sem grandes impactos para a atividade econômica do país ou de convergência com uma pauta macroestrutural.
O projeto parece simples, mas atinge todos os brasileiros, celebrou Bolsonaro. “Todo mundo ou conduz ou é conduzido”, afirmou. Ele defendeu que ainda tem muito a ser revisto e que todas essas atualizações passarão pela Câmara.
O chefe do Executivo federal foi recepcionado pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, que vê a pauta como um projeto de desburocratização, e por Rodrigo Maia. O presidente da Câmara também considera o projeto importante e define como uma pauta que “atinge e gera aflição na vida de milhões de brasileiros, principalmente aqueles que vivem de transporte, como taxistas e caminhoneiros”.
A matéria tem erros e acertos, ponderou David Duarte Lima, presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito e professor da Faculdade de Saúde da UnB. “Considero razoável o aumento do prazo de validade da CNH, porque o processo de habilitação é muito complexo e precisa ser simplificado. O condutor com até 50 anos está em pleno gozo das condições ideais para dirigir, então, nisso o governo acertou”. Em contrapartida, ele acredita que o governo cometeu generalização ao dobrar os pontos na carteira.
Simbolismo
Mesmo alguns críticos do governo, no entanto, viram o gesto como simbólico para o relacionamento harmonioso entre os Poderes. O deputado Evair Vieira de Melo (PP-SC), segundo-vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) na Câmara, fez boa avaliação da visita de Bolsonaro. “Não vejo nada que o desabone. Ele está fazendo diferente e mantendo a coerência com que sempre atuou. Outros parlamentares querem que o governo faça diferente e proponha agenda, mas não temos de esperar o Planalto propor. Nós é que devemos ser protagonistas e ajudar não o que o governo quer, mas o que é bom para o país”, destacou.
Para o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), a pauta mostra que o parlamento não pode se limitar a discutir apenas temas macro. “O próprio presidente (da Câmara) Rodrigo (Maia) sinalizou isso. Ao mesmo tempo em que discutimos questões macro, governo e Congresso se preocupam com o dia a dia das pessoas, que, nesse caso, tem a ver com a carteira de motorista, de revisar a questão da pontuação, dos prazos, da própria forma de apresentação, que passa a ser digital”, ressaltou. “A vinda do presidente marca posição e determinação e, juntos, construiremos uma pauta pelo Brasil.”
O presidente da Comissão Especial da reforma da Previdência, Marcelo Ramos (PL-AM), foi um dos mais críticos. “Depois reclamam quando digo que o presidente Bolsonaro não tem noção de prioridade e do que é importante para o país. Enquanto estamos em um seminário sobre a reforma, ele está vindo para a Câmara apresentar PL que trata de aumentar pontos na carteira de maus motoristas”, escreveu no Twitter. O colegiado presidido por ele promoveu, ao longo do dia, um evento com a presença de especialistas internacionais sobre o tema, ao qual Bolsonaro não marcou presença. A retórica do grupo avesso ao gesto do presidente diz respeito à falta de defesa do pesselista à reforma e da lentidão em propor outras agendas econômicas.
O que prevê o PL
Veja alguns pontos do projeto de Bolsonaro
» Aumenta de 20 para 40 o número de pontos para suspensão da CNH
» Eleva de cinco para 10 anos a validade da carteira — válida para as CNHs
de pessoas até 65 anos. Para idosos, passa de três para cinco anos
» Acaba com multa para motorista que transporta criança sem cadeirinha. Será aplicada apenas advertência
» Dispensa a exigência de exame toxicológico para motoristas profissionais
» Obriga os novos veículos a terem luz de rodagem diurna, sem nenhuma aplicação para veículos em circulação
» Acaba com a exclusividade dos Detrans de credenciar clínicas médicas para o exame obrigatório
ANÁLISE DA NOTÍCIA: A falta de justificativas
Por Leonardo Cavalcanti
A incapacidade do governo Jair Bolsonaro de trabalhar com a chamada Análise de Impacto Regulatório (AIR) — revelada no decreto de liberação das armas — volta a ser demonstrada no projeto de lei que estende a validade da carteira de motorista, dobra o limite de pontuação e acaba com a multa para quem transportar crianças fora de cadeiras de retenção. A tal da AIR, como se sabe, trata-se da melhor evidência para alcançar um objetivo específico. É uma testagem de um projeto a partir de cruzamento de dados, investigação e análise de opções. Tudo feito de maneira transparente.
Só depois de pensar e repensar uma nova proposta de política pública busca-se a implementação, reestudando-a, de tempos em tempos, para pinçar erros e acertos, e, assim, aprimorá-la. Nada disso foi seguido por Bolsonaro, que mexe em políticas com base no “achomêtro”, de maneira irresponsável, tal a incapacidade de avaliar os riscos para a população — nos dois casos, o das armas e o do trânsito, têm algo ainda mais grave, pois há vidas em jogo. São mudanças que podem aprofundar os assassinatos e as mortes no trânsito, e não há ninguém que hoje possa discordar de tal previsão, dada a ausência de estudos.
O absurdo é tanto que é provável que o presidente nem mesmo saiba qual é o problema a ser enfrentado pela população. No caso das armas, se é dar mais segurança, trabalhos profundos, como a de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostram que quanto mais revólveres e espingardas, mais mortes. No caso do trânsito, o problema encontrado pelo governo seria a “indústria da multa”. O mais sensato seria pensar numa maior rigidez na punição de motoristas inconsequentes — muitos responsáveis por mortes —, afinal, as regras atuais não parecem excessivamente rigorosas.
Há um outro fator a ser considerado. As últimas pesquisas mostram que a maioria da população rejeita a liberação de armas. Bolsonaro, assim, estaria governando para um grupo menor. O que a população dirá sobre a boa vontade do governo com os maus motoristas? A ver.
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