Brasil
Projeto de lei propõe inclusão do crime de pedofilia no Código Penal
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Crimes cibernéticos de abuso infantil crescem no Brasil e expõem falhas na legislação e no combate à violência contra crianças e adolescentes. Segundo especialistas, além de endurecer as penas, é preciso agir preventivamente
O crescimento alarmante dos crimes digitais envolvendo abuso infantil tem evidenciado fragilidades na legislação brasileira e exposto lacunas no enfrentamento desse tipo de crime. Especialistas alertam que a falta de uma política de Estado estruturada para a proteção da infância compromete a eficácia das ações de prevenção e combate à violência sexual infantil no país. Atualmente, tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) o Projeto de Lei 4299/20, de autoria da ex-deputada Rejane Dias (PT-PI), que propõe a inclusão do crime de pedofilia no Código Penal. A proposta prevê punição para quem constranger, corromper ou expor crianças e adolescentes de forma inapropriada, além de aumentar a pena para esses delitos, endurecendo as consequências para os agressores.
Em 2024, a Polícia Federal (PF) realizou 1.003 operações para combater crimes de abuso infantil, com 367 prisões em flagrante, 92 vítimas resgatadas e 1.124 mandados de busca e apreensão cumpridos, em todo o país. Plataformas como o Telegram se tornaram territórios férteis para redes criminosas que compartilham imagens e vídeos ilegais sob anonimato, dificultando a atuação das autoridades. De acordo com dados da Childhood Brasil, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), que atua na proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, 85% dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes são cometidos por conhecidos, na maioria dos casos, dentro de casa.
A cada hora, oito crianças ou adolescentes são vítimas de violência sexual no Brasil, mas apenas 8,5% dos casos denunciados. “A internet, quando não monitorada, pode normalizar comportamentos de risco. O problema não está apenas no criminoso que aborda crianças, mas também na disseminação de conteúdos hipersexualizados, que afetam a percepção infantil sobre limites e proteção”, alerta Itamar Gonçalves, superintendente de Advocacy da Childhood Brasil.
Mesmo com um volume crescente de denúncias, a fiscalização ainda é limitada. Gonçalves enfatiza que as big techs precisam ser responsabilizadas. “O Telegram, por exemplo, tem sido um dos principais meios de disseminação de material de abuso infantil. Não podemos permitir que esses espaços fiquem sem fiscalização. As plataformas precisam atuar ativamente na remoção desse conteúdo e colaborar com as investigações”, afirma.
O mapeamento de 2024 da PF mostra que o estado de São Paulo lidera as estatísticas de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, com 222 operações e 90 prisões em flagrante, seguido pelo Paraná, com 105 operações e 40 flagrantes. O Rio Grande do Sul teve 68 operações, com 23 pessoas presas em flagrante. Em estados como Pará, Amazonas, Maranhão e Mato Grosso, a situação é igualmente crítica. Durante as operações do ano passado, crianças também foram resgatadas de situações de exploração sexual em cidades pequenas e áreas isoladas, revelando que a violência contra menores não está restrita a grandes centros urbanos.
Mesmo com essas operações, o índice de responsabilização dos criminosos ainda é baixo. Segundo Itamar Gonçalves, uma das principais falhas do sistema brasileiro é a falta de uma política nacional integrada de enfrentamento à violência sexual infantil. “Temos leis, temos campanhas, mas não temos uma política de Estado para prevenção da violência infantil. Precisamos de um plano nacional consolidado, envolvendo educação, saúde, assistência social e segurança pública”, aponta ele.
O superintendente de Advocacy da Childhood Brasil também alerta para o despreparo do sistema ao lidar com crianças vítimas de abuso. A Lei da Escuta Protegida, sancionada em 2017 para garantir que menores prestem depoimento apenas uma vez, não é aplicada de maneira eficiente na maioria dos estados. “Em muitos lugares, a criança tem que contar sua história 10 vezes ou mais. E, pior, em alguns casos, a acareação ainda acontece na frente do abusador”, denuncia o especialista.
No estado do Amazonas, a Lei nº 7.346/2025 cria um Cadastro Estadual de Pedófilos, uma tentativa de monitoramento contínuo de criminosos condenados. Mas especialistas alertam que, além da criação de um bancos de dados, é preciso garantir que o Brasil tenha uma política de Estado voltada à proteção da infância. “Apenas endurecer as penas não basta; é preciso agir preventivamente e garantir um sistema de apoio eficiente para proteger as vítimas e responsabilizar os agressores”, afirma Itamar.
Ele diz ainda que, além da revitimização durante o processo judicial, há um outro problema estrutural que é a falta de profissionais capacitados para identificar e atender crianças vítimas de abuso. “Professores, médicos e assistentes sociais não têm o preparo adequado para identificar sinais de abuso. A gente criou, junto com o Unicef e o Canal Futura, uma série para treinar esses profissionais, porque esse é um dos grandes gargalos no enfrentamento deste crime”, explica.
Impacto psicológico
Para a psicóloga infantil Lorena Lopes, especialista em transtornos do desenvolvimento, o abuso sexual infantil deixa marcas profundas no desenvolvimento emocional das vítimas. Ela destaca que os primeiros sinais podem ser perceptíveis no comportamento da criança e que “os pais precisam estar atentos a mudanças comportamentais”. “Crianças que antes dormiam bem podem passar a ter medo do escuro. Alguém extrovertido pode se tornar introspectivo ou agressivo. São sinais que não devem ser ignorados”, alerta.
Além disso, Lopes reforça que a educação infantil sobre o próprio corpo é essencial para prevenir casos de abuso. “Muitos pais evitam falar sobre o assunto por tabu, mas isso só aumenta o risco. A criança precisa entender que existem limites físicos e que ninguém, nem mesmo familiares próximos, pode ultrapassá-los”, comenta.
Ainda de acordo com a psicóloga, o silêncio e o medo são os principais obstáculos para que as crianças denunciem os agressores, já que muitas delas são ameaçadas para que não revelem o abuso, e esse ciclo de silêncio e impunidade perpetua a violência. “Toda criança dá sinais de que algo errado está acontecendo com elas. São mudanças comportamentais, marcas de agressão, agressividades, medo. E é papel dos pais perceberem seus filhos”, enfatiza.
Telegram
A ausência de um controle rigoroso sobre o ambiente digital, combinada com falhas na legislação, permite que criminosos se aproveitem da vulnerabilidade de crianças e adolescentes. A SaferNet, organização que monitora crimes virtuais, aponta que o Telegram se tornou um dos principais meios para a disseminação de material de abuso infantil, operando por meio de grupos fechados, criptografia e perfis anônimos.
Segundo a SaferNet, as denúncias contra grupos e canais contendo imagens de exploração sexual infantil aumentaram 78% entre o primeiro e o segundo semestre de 2024. O relatório da Organização Não Governamental (ONG) revela que, enquanto o número total de grupos denunciados subiu 19%, a quantidade de canais que permaneceram ativos sem qualquer moderação cresceu 76%, alcançando 349 grupos operando livremente na plataforma.
Mesmo após sucessivos alertas de autoridades e ONGs, a moderação do Telegram continua sendo considerada ineficiente. O relatório da SaferNet aponta que, em 2024, o aplicativo foi responsável por 90,35% das denúncias envolvendo apps de mensagens relacionadas à exploração sexual infantil. Desde 2021, aparece entre os 10 domínios mais denunciados por armazenar e disseminar esse tipo de conteúdo ilegal. Apesar de anunciar a remoção de 360 mil grupos e canais suspeitos, a empresa não detalha os critérios usados para essa moderação, nem se há um sistema preventivo eficiente para impedir a reincidência.
A aparente falta de compromisso do Telegram em combater esse tipo de crime é reforçada por sua ausência na Tech Coalition, uma organização que reúne gigantes da tecnologia, como Google, Meta, Apple e Microsoft, para implementar protocolos rígidos de transparência e combate à exploração infantil. A empresa também não possui registro no Banco Central e utiliza 23 provedores de serviços financeiros, muitos deles em paraísos fiscais, para processar pagamentos, dificultando a rastreabilidade financeira.
Especialistas alertam que a inação do Telegram e sua estrutura descentralizada tornam a plataforma um terreno fértil para redes criminosas, que continuam a operar com impunidade, explorando lacunas regulatórias e a falta de fiscalização eficaz.
Itamar Gonçalves, superintendente de Advocacy da Childhood Brasil, reforça a necessidade de uma atuação mais rigorosa das plataformas digitais no combate ao abuso infantil na internet e critica a falha na fiscalização do Telegram. Para ele, as empresas de tecnologia devem ser responsabilizadas e precisam atuar de forma mais ativa na remoção desse tipo de conteúdo e na cooperação com as investigações policiais. “Não podemos permitir que esses espaços fiquem sem fiscalização. As plataformas precisam atuar ativamente na remoção desse conteúdo e colaborar com as investigações.”
O especialista ressalta que endurecer penas não é suficiente para combater o abuso infantil. É essencial que o Brasil tenha um sistema de apoio eficiente para proteger as vítimas, prevenir novos casos e punir os agressores de forma eficaz. “É preciso agir preventivamente e garantir um sistema de apoio eficiente para proteger as vítimas e responsabilizar os agressores.”
Projeto de Lei
O Projeto de Lei 4299/20, apresentado pela ex-deputada Rejane Dias (PT-PI), propõe a inclusão da pedofilia como crime específico no Código Penal, por meio da alteração do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. A proposta prevê a criminalização de atos como constranger, corromper, exibir o corpo de crianças ou adolescentes apenas com roupas íntimas ou tocar partes do corpo com intuito de satisfazer a lascívia, independentemente da ocorrência de conjunção carnal.
Caso o crime seja cometido em ambiente doméstico, com relação de coabitação, dependência econômica ou hierarquia no emprego, a pena poderá ser aumentada em até um terço. Além disso, se o agressor for parente da vítima ou tiver mantido relação de afeto com ela para se vingar de outro membro da família, a pena pode ser ampliada em até dois terços, tornando a punição mais severa para casos de abuso cometidos por pessoas próximas da criança ou adolescente.
Atualmente, o Código Penal prevê punições para crimes sexuais contra vulneráveis, incluindo estupro de vulnerável, indução de menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem, satisfação da lascívia na presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição infantil e divulgação de cenas de estupro de vulneráveis.
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